Os últimos dias foram de um calor abrasador na Terra Santa, Jerusalém, e na vizinha Tel-Aviv, distante pouco mais de 70 quilômetros. Não apenas pelo clima, o tempo esquentou na região quando, no sábado 3, quase 450 mil manifestantes tomaram as ruas das duas cidades para protestar contra a austeridade fiscal e o alto custo de vida com educação, alimentos, moradia e transporte. Menos de um século depois da criação do Estado de Israel, Jerusalém e Tel-Aviv – para além da história que abrigam entre muralhas milenares – são metrópoles de grandes vias vicinais, prédios contemporâneos e tecnologia de serviços de última geração.
Mas, nas praças e arredores, tendas e acampamentos improvisados dos sem-teto teimam em mostrar que nem todos os seus moradores estão adequadamente atendidos por esse sopro de modernidade. A insatisfação social, exibida em cartazes e faixas dos movimentos de massa que avançam numa avalanche crescente de participantes, é apenas um dos muitos e inesperados desafios que o governo de Israel enfrenta em plena temporada da Primavera Árabe. No front externo, os testes políticos são ainda mais delicados e fundamentais para o futuro daquele país e de suas relações com o resto do mundo.
A começar pela histórica decisão que pode ser tomada ainda nesta semana. Na sexta-feira 23, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, está prevista a decretação unilateral do Estado da Palestina. O movimento de apoio a medida já contaria com o endosso de 140 países-membros, inclusive os da América Latina, como o próprio Brasil, num total de 193 possíveis votantes. Mahmoud Abbas, comandante do Fatah e presidente da Autoridade Nacional Palestina, deve na ocasião tomar a palavra e proclamar o surgimento da nova nação, numa espécie de grito de independência de Israel. Especialistas apontam que o gesto terá pouco ou nenhum efeito prático, dado que os EUA poderão vetar a resolução. Mas será decerto um divisor de águas político de proporções extraordinárias, como na passagem bíblica em que Moisés abriu o Mar Vermelho para a fuga dos hebreus rumo à terra prometida.
O presidente de Israel, Shimon Peres – Prêmio Nobel da Paz e um estadista na melhor definição do termo – trouxe palavras de conciliação diante da iminência de novos tratados entre judeus e palestinos. Há algumas semanas, na primeira vez em que se pronunciou sobre o assunto, disse que o seu país está disposto a negociar. É mais do que mera demonstração de boa vontade. Numa mudança de 180 graus na conduta diplomática que vinha prevalecendo até então, o entendimento entre os dois povos, no que depender de Peres e de seus conterrâneos, pode finalmente sair do plano das intenções para a realidade.
Com ele concorda, por exemplo, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, que já declarou: “Eu aceito o Estado palestino. É hora de o presidente Abbas conclamar o seu povo e dizer: eu aceitarei o Estado judeu.” O veredito estaria com Abbas e seus aliados? Não exatamente assim. Israel se diz preparada para fazer generosas concessões pela paz, mas avisa que não poderá voltar às fronteiras de 1967 porque elas são indefensáveis e não levam em conta as mudanças demográficas que ocorreram nos últimos 44 anos. Netanyahu é inflexível no que se refere a esse marco regulador das negociações. “Não há uma paz baseada em ilusões”, diz.
Desde a Guerra dos Seis Dias entre Israel e seus vizinhos árabes em 1967 ficou claro que o armistício com os palestinos só seria alcançável por meio de trocas territoriais por segurança. Israel cederia parte das áreas invadidas em contrapartida das colônias que mantém em território palestino, e vice-versa. As fronteiras pré-1967 são importantes para ambos os lados por razões distintas. Quando Israel anexou territórios de Gaza, Jerusalém Oriental, Cisjordânia e as Colinas de Golã, além da Península do Sinai – depois devolvida ao Egito – desagradou parte do mundo que lhe apoiava até então. Segundo os israelenses, essas anexações foram fruto de autodefesa nas seguidas guerras iniciadas contra seu país. À luz do atual quadro encontrado na região, onde prevalecem grandes centros populacionais israelenses nas áreas conquistadas, é irreal esperar que o resultado das negociações finais de status de israelenses e palestinos venha a ser o retorno pleno e completo às linhas daquele período.
Para os palestinos, a divisão anterior a 1967 é vital, sem a qual a sua “pátria” será constituída por “meros fragmentos” de terra. “As linhas pré-67 não eram fronteiras de paz, eram fronteiras de repetidas guerras, e agora Israel tem certas exigências de segurança que deverão ser incluídas em qualquer acordo”, afirmou Netanyahu num decisivo encontro com o presidente americano, Barack Obama, em maio passado. Obama está inclinado a respeitar as condições impostas pelos israelenses. E esse é o ponto de impasse que ainda perdura à mesa para a negociação.
O reconhecimento de Israel pelos árabes como um país de fato e de direito é algo que eles se recusam a aceitar até hoje porque, alegam, condenaria mais de um milhão de palestinos a viver como cidadãos de segunda classe dentro de Israel. Além de Mahmoud Abbas, da Autoridade Palestina, Khaled Meshaal, da organização extremista Hamas – que controla a Faixa de Gaza – e Sayyid Hassan Nasrallah, do Hezbollah libanês, não querem nem ouvir falar dessa alternativa para uma paz definitiva.
Andando pelas ruas e estradas de Israel, no caminho que leva ao Mar Morto, 400 metros abaixo do nível dos oceanos, onde beduínos montam suas comunidades improvisadas, é possível notar um aparente clima de tranquilidade. Carros de placa amarela dos israelenses cruzam com veículos de placa branca dos palestinos sem ocorrências de animosidade de lado a lado. Policiais e habitantes do local são unânimes em afirmar que há muito tempo não acontece nenhum tipo de problema entre eles.
O que os israelenses, detentores do território, pleiteiam é que a nação árabe esteja isenta de extremismos em todos os aspectos e que aja como o seu governo, que, após a reconquista da parte oriental de Jerusalém, deu plena e total liberdade religiosa e acesso, sem nenhuma restrição, aos lugares sagrados de cristãos, judeus e mulçumanos. Todos por ali, de fato, circulam livremente. Dezessete vezes destruída e 18 vezes construída, Jerusalém transformou-se por si só num milagre urbanístico e social. É considerada pelos judeus sua capital. Mas essa também não é uma questão pacífica. A maior parte dos países prefere manter suas embaixadas e representações diplomáticas em Tel-Aviv em virtude das décadas de conflito entre palestinos e israelenses.
Os ventos revolucionários da Primavera Árabe trazem algum sopro de otimismo e esperança e podem ajudar a varrer do mapa o ambiente de beligerância ainda marcante naquelas terras. Não há mais espaço no Oriente Médio para que países vizinhos desconsiderem o Estado de Israel como uma realidade nem para ações de resistência ao aparecimento do Estado da Palestina com fronteiras bem definidas e justas.
O Estado de Israel foi criado ainda nos idos de 1948, quase um ano após a lendária sessão do Plano de Partilha nas Nações Unidas presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha, que hoje dá nome a uma das principais praças de Jerusalém. Mais de 63 anos depois, o território de disputas ancestrais deverá ter sua configuração novamente revista. E mais uma vez um brasileiro – ou brasileira, no caso – poderá figurar entre os protagonistas desse momento histórico. A presidente Dilma Rousseff, que na quarta-feira 21 será a primeira mulher a abrir uma assembleia da ONU, prometeu atender ao apelo do embaixador palestino, Ibrahim Al Zeben, para que toque no assunto no seu discurso inaugural.
Os israelenses, por sua vez, preparam-se para eventuais distúrbios que venham a acontecer no país, caso vingue a hipótese de uma decisão desfavorável a seus interesses. O governo israelense, embora tendendo à conciliação, deixa um pé atrás e pensa até no cancelamento dos acordos firmados até aqui pelos dois lados, inclusive o do Tratado de Oslo, que instituiu a Autoridade Palestina, além da anexação definitiva dos blocos de assentamentos judeus. É uma ameaça que, no fundo, Israel não quer levar adiante.
Neste estágio de ebulição dos acontecimentos, a verdade é que qualquer movimentação além da conta pode colocar tudo a perder. Como maior potência militar da região, Israel possui armas de longo alcance e uma frota de blindados bélicos que não hesitará em usar, caso considere necessário. No passado recente, tamanho poderio levou a alguns atos extremos, como no caso do ataque à flotilha da Turquia em 2010, que furou o bloqueio israelense tentando levar ajuda humanitária para a Faixa de Gaza.
O saldo do incidente foi a morte de nove ativistas turcos. Há poucos dias, a ONU terminou o processo e divulgou as conclusões do Relatório Palmer, apontando como criminoso o ato israelense. A avaliação do relatório e a resistência do governo daquele país em pedir desculpas pelo episódio e amparar as famílias das vítimas levou a Turquia a comunicar o corte das relações diplomáticas bilaterais e a expulsar o embaixador do até então parceiro. Os turcos também suspenderam os acordos econômicos entre os dois países, puseram fim à cooperação militar e passaram a apoiar abertamente a causa palestina de criação de um Estado independente.
Na sexta-feira 9, outro golpe recaiu sobre Israel. Sua embaixada no Egito foi invadida e depredada, deixando um saldo de quase 1,2 mil feridos e pelo menos três mortos. O embaixador israelense no Cairo e outros 85 diplomatas e suas famílias tiveram de ser retirados às pressas, de madrugada, da capital egípcia para não virar alvo da fúria dos manifestantes.
PROPOSTA
A paz com os palestinos só será alcançável por meio de trocas territoriais
e envolve as fronteiras delimitadas na Guerra dos Seis Dias em 1967
Todos esses desentendimentos com países vizinhos têm fragilizado a posição israelense e colocado o primeiro-ministro Netanyahu entre a cruz e a espada. Com as pressões internas por melhorias sociais e as externas, que geram eventuais demandas militares, o premiê terá de escolher não apenas saídas políticas a seguir, mas também para onde irá dirigir a maior parte dos recursos de seu enxuto orçamento.
O presidente do Banco Central israelense, Stanley Fischer, que já ocupou o principal cargo do FMI e antes presidiu o Citigroup, diz que a economia israelense mostra sinais de melhora. Fischer, que no início deste mês esteve reunido com empresários brasileiros para falar dos atrativos da economia do país, deixou claro que existem alternativas de aumento de parcerias nos negócios bilaterais. Hoje a balança entre Brasil e Israel gira em torno de US$ 1,2 bilhão, sendo US$ 935 milhões de exportações israelenses. A tentativa de aproximação com os brasileiros ocorre num momento estratégico. Com a eventual perda de poder na geopolítica da região, a busca por aliados comerciais e políticos fora do eixo do Oriente Médio é, do ponto de vista israelense, vital.
DIPLOMACIA VERDE-AMARELA
O brasileiro Oswaldo Aranha presidiu, em 1947, a assembleia da ONU
que levou à criação do Estado de Israel. Dilma abre, nesta semana,
a assembleia que pode levar ao surgimento do Estado palestino
A delegação do Brasil, com 20 CEOS, liderados pelos presidentes do LIDE, João Doria Jr., e da Audi, Paulo Kakinoff, e acompanhada pelo presidente da Câmara de Comércio Brasil-Israel, Jayme Blay, chegou a Jerusalém há duas semanas para uma rodada de encontros que incluiu uma audiência com o próprio Shimon Peres e conversas com 87 empresários israelenses.
A embaixadora do Brasil em Israel, Maria Elisa Berenguer, empenhou-se pessoalmente nas tratativas para a ampliação do intercâmbio e chamou para um jantar em sua casa o ministro de Indústria, Comércio e Trabalho daquele país, Shalom Simchon, que foi claro no seu recado aos brasileiros: “Não deixem que as questões políticas afetem as oportunidades de incremento nas nossas relações.”
Do Nobel da Paz, Shimon Peres, os CEOs ouviram palavras de estímulo diante das incertezas globais e levaram verdadeiras lições de boa gestão pública. Peres disse, por exemplo, que a aposta em educação não deve ser considerada gasto, mas investimento. Apontou que os países não podem ficar reféns do passado. “Estadista é aquele que olha para o futuro. O pacifista é o que não olha para o passado”, afirmou num claro recado aos que buscam a via do conflito.
Peres ainda recomendou ao Brasil que se torne mais globalizado e lançou afagos ao ex-presidente Lula: “Foi um revolucionário ao assumir o poder, eleito pelo povo.” Não há dúvida de que, em meio a tantos ruídos de comunicação com seus vizinhos, os israelenses, liderados por Peres, saíram à procura de novos interlocutores com um histórico de diplomacia mais conciliadora, como o Brasil. Sob a batuta de Dilma, a orientação nesse sentido não mudou, e o próprio Itamaraty já disse que não vai virar as costas a Israel na negociação com os árabes, muito embora tenha se manifestado a favor do Estado da Palestina. Segundo o porta-voz do Itamaraty, Tovar Nunes, a primeira preocupação é com a segurança de Israel, “que é um Estado democrático”. Foi dada a senha para um papel de intermediação brasileira nos entendimentos.