María Elena Navas
Enquanto a Rússia anunciava na terça-feira seu "alarme" devido à mobilização de tropas da Otan perto de suas fronteiras – um reflexo da crise no leste da Ucrânia, onde ativistas pró-Rússia ocupam prédios do governo ucraniano em várias cidades -, o chanceler russo, Sergei Lavrov, embarcava em uma viagem internacional oficial.
Mas o destino não era Kiev nem conferências de paz para eliminar a crescente tensão na região, mas sim a América Latina. Sua primeira escala foi em Cuba.
O que faz o ministro de Relações Exteriores russo pelo continente, em pleno auge da pior crise entre Rússia e Ocidente desde a Guerra Fria?
A resposta oficial da Chancelaria é que Lavrov faz uma viagem por Cuba, Nicarágua, Peru e Chile nesta semana para "aprofundar questões relativas à cooperação bilateral" e "revisar acordos aprovados" previamente por Moscou e os governos locais.
E, segundo o comunicado, o chanceler "agradecerá pessoalmente" aos governos de Cuba e Nicarágua por terem votado contra uma resolução da ONU, em março, a respeito da chamada integridade territorial da Ucrânia, após a contenda envolvendo a Crimeia.
A viagem ilustra os interesses políticos e econômicos de Moscou na região. Nos últimos anos, a Rússia tem demonstrado crescente interesse em exercer sua influência na América Latina, em especial sobre os países da Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), fundada em 2010 como "alternativa" à OEA (Organização dos Estados Americanos), sediada em Washington.
Segundo o FMI, o comércio entre Rússia e AL alcançou US$ 13,3 bilhões em 2013, e Brasil e Argentina são seus principais parceiros comerciais. E nos últimos meses Moscou e a Celac vêm tentando facilitar a troca de produtos e o trânsito de pessoas, por meio de acordos de eliminação de vistos.
Por tudo isso, a viagem do chanceler russo à região não causa surpresa. Mas o que surpreendente, segundo analistas, é o momento escolhido por Moscou para agradecer pessoalmente a seus parceiros latino-americanos.
Cooperação militar
"Claramente é uma mensagem aos Estados Unidos com uma óbvia referência aos desdobramentos na Ucrânia", diz o jornalista do Serviço Russo da BBC Famil Ismailov. "A mensagem para Washington é: 'Você vem às minhas fronteiras, também posso chegar perto das suas'."
Ismailov afirma que a Rússia sempre rejeitou os planos de expansão da Otan rumo ao leste (Ucrânia e Geórgia).
"Moscou sempre disse que as ações na Ucrânia ocorreram porque a Otan se aproximou demais das fronteiras russas", agrega o jornalista da BBC. "Agora, a Rússia faz o mesmo com Washington – mostra que tem a capacidade de se aproximar das fronteiras americanas e talvez recordar o ocorrido na década de 1960, na Crise dos Mísseis de Cuba (quando os EUA descobriram bases de mísseis soviéticos em território cubano)."
Após a Revolução Cubana, a União Soviética conseguiu aumentar rapidamente sua influência econômica e militar na América Latina. Mas essa influência diminuiu depois do colapso soviético.
Moscou vem tentando mudar isso nos últimos anos. Para Carl Meacham, diretor de Américas do Centro de Estudos Internacionais Estratégicos (CSIS), em Washington, "mesmo enquanto a Rússia defende seus interesses em suas imediações, simultaneamente testa territórios já conhecidos no outro lado do mundo, voltando a visitar a América Latina".
"Ainda que a Rússia não tenha se ausentado totalmente da região nos últimos anos, declarações recentes do ministro da Defesa (Sergei Shoigu) indicam que esse envolvimento chegou a um novo nível", agrega o analista.
No ano passado, Shoigu anunciou planos de construir bases militares na Nicarágua, Cuba e Venezuela. Segundo Meacham, isso mostra o envolvimento "mais direto da Rússia na região desde o fim da Guerra Fria".
Agora, Lavrov pode ter a chance de reforçar as bases para essa cooperação militar.
No ano passado, o Brasil finalizou acordo para a compra de 12 helicópteros militares russos, por US$ 150 milhões. Seis meses depois, Shoigu voltou ao país para finalizar a venda de sistemas de mísseis para reforçar a capacidade de defesa brasileira, por US$ 1 bilhão.
Na mesma viagem, Shoigu visitou o Peru para promover a venda de veículos blindados por US$ 700 milhões.
Em dezembro, Lima anunciou que suas Forças Armadas planejavam adquirir 24 helicópteros militares russos.
‘Mensagem intencional’
A viagem começou no mesmo dia em que os Estados Unidos e a União Europeia anunciaram uma outra lista de sanções a Moscou por "seu fracasso em por fim à agitação no leste da Ucrânia".
"Sem dúvida, existe um claro interesse da Rússia na região", diz Ismailov. "Mas o momento em que ocorre este tour é conspícuo. E essa é a intenção de Moscou."
"A mensagem é intencional. Mas a presença russa na América Latina pode não representar uma ameaça real a Washington, porque seus aliados na região estão passando por problemas graves."
Para o analista Carl Meacham, do CSIS, "seja uma viagem simbólica ou não, é muito provável que Washington esteja seguindo de perto os passos da Rússia na América Latina."
"Pode ser uma represália simbólica ao envolvimento dos americanos na Ucrânia ou pode ser uma demonstração de poder rumo a uma mudança estratégica global mais ampla", diz Meacham.
"Mas, de qualquer forma é importante reconhecer o contexto em que estes eventos ocorrem – em particular, a natureza das relações entre Rússia e América Latina desde o fim da Guerra Fria – para que possamos entender melhor as potenciais implicações deles para os interesses dos Estados Unidos na região."