UM ANO DE GUERRA: A PAZ É POSSÍVEL?
SERGIO DUARTE
Embaixador, ex-Alto Representante das
Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento.
Presidente das Conferências Pugwash sobre
Ciência e Assuntos Mundiais.
No dia 24 de fevereiro o Presidente Vladimir Putin comemorou o primeiro aniversário da guerra contra a Ucrânia com um discurso em que renovou ameaças nucleares e repetiu acusações ao Ocidente. A invasão do país vizinho pela Rússia constitui uma flagrante violação do direito internacional. Todos os estados signatários da Carta das Nações Unidas se comprometeram agir, em seu relacionamento internacional, segundo os Princípios enunciados no Artigo 2, entre os quais abster-se de ameaçar ou usar a força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, assim como evitar qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas, e a resolver suas controvérsias internacionais por meios pacíficos, de modo a não comprometer a paz, a segurança e a justiça. A anexação de territórios pela força não é admissível.
A guerra entre os dois países completa um ano sem que se possa antever seu fim. Dezenas de milhares de ucranianos, na maioria crianças, mulheres e pessoas idosas, foram obrigados a procurar refúgio em países estrangeiros. Extensas zonas urbanas e rurais na Ucrânia estão destruídas e até o momento mais de 250 mil pessoas, entre combatentes e civis de ambos os lados já pereceram. A ameaça de uso de armas nucleares tem sido levianamente mencionada com maior ou menor estridência por líderes das principais potências envolvidas. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento de novas armas cada vez mais sofisticadas torna essa assustadora possibilidade ainda mais provável à medida que a guerra se e intensifica. Infelizmente, tais temores não são desconhecidos para a humanidade.
Durante a crise dos mísseis de Cuba, que durou somente 13 dias em 1962, o mundo se viu diante da iminência de uma confrontação nuclear pela primeira vez após o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki. Nas décadas seguintes ocorreram diversos incidentes com perigos nucleares graves. Nos tempos que correm a perspectiva de uma catástrofe nuclear volta a assombrar a humanidade, apesar da reafirmação, pelos presidentes Vladimir Putin e Joe Biden, em junho de 2021, do princípio de que “uma guerra nuclear não terá vencedores e jamais deve ocorrer”.
Os dois líderes se comprometeram, na ocasião, a engajar seus países em um diálogo “decidido e robusto” com o objetivo de preparar as bases para medidas futuras de controle de armamentos e redução de riscos. Em vez disso, porém, o relacionamento entre ambos se deteriorou e se encontra hoje em um dos níveis mais baixos da história. O objetivo original de “eliminar as armas nucleares dos arsenais nacionais”, expresso na primeira resolução da Assembleia Geral da ONU, em 1946, parece hoje completamente esquecido. Ao mesmo tempo, o diálogo entre as duas principais potências praticamente cessou. A “suspensão temporária” do acordo Novo START anunciada por Putin sinaliza o abandono dos esforços bilaterais de controle de armamentos.
No tempo da Guerra Fria, políticos e analistas dos dois lados da confrontação ideológica costumavam atribuir a ausência de guerras na Europa à existência de armas nucleares. Até o início da segunda década do século corrente a opinião pública nos países nucleares e seus aliados consideravam a dissuasão nuclear responsável pelo mais longo período de paz no Velho Mundo na era moderna. A partir de 24 de fevereiro do ano passado, contudo, essa convicção já não se sustenta, em vista da decisão russa de invadir a Ucrânia sob o pretexto de que a expansão da OTAN para o leste ameaçava seus interesses fundamentais de segurança. Pela primeira vez desde 1939 eclodiu uma guerra entre dois países europeus.
De um lado, no conflito atual, está uma potência possuidora de armas nucleares reconhecida como tal pelo Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e do outro um país que embora não nuclear é apoiado por uma aliança militar capaz de utilizar armamento atômico. Essa situação torna imperativo redobrar esforços para a eliminação desses riscos e buscar uma paz duradoura. No entanto, as questões a resolver são extremamente complexas para ambos os adversários.
Nos termos da Carta das Nações Unidas, o Conselho de Segurança tem a responsabilidade primordial pela manutenção da paz e segurança internacional e autoridade para determinar a existência de qualquer ameaça ou rompimento da paz ou ato de agressão, assim como para fazer recomendações ou tomar as medidas necessárias para o restabelecimento da paz e segurança, inclusive por meio de operações militares ou de outra natureza mediante o uso de forças colocadas à disposição pelos membros das Nações Unidas. Todos os estados assumiram de antemão a obrigação de aceitar e executar as decisões do Conselho nesse particular.
Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança – China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia – possuem o direito de veto. Imediatamente após o início das hostilidades, em 25 de fevereiro, a Rússia vetou um projeto de resolução que a condenava pela invasão e exigia a retirada imediata e incondicional de suas forças do território ucraniano. Ao longo dos 75 anos de existência da ONU o poder de veto tem sido usado pelos membros permanentes em outras ocasiões, impossibilitando a ação do Conselho. Torna-se, assim, extremamente improvável que esse órgão possa exercer seus poderes em disputas de que algum deles seja parte diretamente interessada, o que lhes assegura virtual imunidade por suas ações.
As guerras em geral terminam pela derrota de um dos contendores, pela exaustão de ambos ou por meio de acordos. Nas circunstâncias atuais, a guerra de desgaste entre a Rússia e a Ucrânia poderá prosseguir ainda por muito tempo. Na ausência de uma solução militar, a maneira menos traumática de encerrar as hostilidades é encetar negociações em busca de um entendimento pacífico. As condições possíveis e realistas de tal resultado ainda estão por ser elaboradas. No entanto, a gravidade da situação torna urgente a necessidade de ação em busca da paz. É possível identificar alguns elementos que terão de fazer parte de uma solução aceitável.
A negociação pressupõe a existência de vontade política de ambas as partes. Um acordo de paz duradouro depende de concessões mútuas, muitas vezes de difícil formulação e aceitação. Em um primeiro momento um cessar-fogo poderia abrir o caminho na direção desejada. Sem dúvida será tarefa árdua chegar a um entendimento viável a respeito do status das regiões contestadas no leste da Ucrânia, mas é igualmente claro que a vontade livremente expressa das respectivas populações terá que ser levada em conta com lisura. Isso deve aplicar-se também à Crimeia, anexada pela Rússia em 2014.
Para que Rússia e Ucrânia se sintam estimuladas a iniciar um processo de negociação é preciso que ambas percebam mais benefícios do que perdas em um eventual ajuste. A ação diplomática esclarecida, tanto de países diretamente envolvidos quanto de outros membros da comunidade internacional mais distantes do conflito é essencial para levar ambos à mesa de negociação. O Brasil tem todas as condições para participar construtivamente desse esforço.
Desde a época da descolonização, especialmente nos anos 1960 e 70, mas também recentemente como no caso da independência de Timor Leste, as Nações Unidas acumularam uma vasta experiência na administração temporária de territórios não autônomos e em operações de manutenção ou consolidação da paz em áreas previamente em conflito. Em alguns casos, zonas desmilitarizadas foram estabelecidas entre estados anteriormente conflagrados.
Os recursos financeiros para essas missões são sem dúvida muito inferiores aos custos das guerras. Em consonância com tais operações é necessário colocar em prática medidas efetivas de alívio para as populações afetadas e de fortalecimento da confiança entre os antigos adversários, inclusive a redução dos riscos nucleares e outras ameaças militares na Europa, por meio de entendimentos diretos entre a Rússia e a OTAN. Finalmente, será preciso organizar e financiar um programa de reconstrução em todas as regiões afetadas pela guerra, assim como assistência para o retorno e reassentamento de refugiados.
Mesmo que no estágio atual não seja possível ainda vislumbrar o início de negociações para o término da guerra, é importante evitar que futuros acordos venham a erodir o sistema de segurança internacional elaborado há setenta e sete anos com base nos elevados objetivos consagrados na Carta das Nações Unidas. Um acordo de paz bem estruturado e duradouro poderá, inclusive, contribuir para o aperfeiçoamento do atual modelo de coexistência e interação pacífica entre as nações, colaborando para a construção de um paradigma global de segurança mais inclusivo e não discriminatório.