“Basta conhecer a história da Crimeia e o que a Rússia e a Crimeia sempre significaram uma para a outra.” Assim Vladimir Putin justificou a anexação russa da Crimeia, em um discurso no Kremlin na terça-feira. “Nos corações e nas mentes das pessoas”, prosseguia o presidente russo, “a Crimeia foi sempre e continua sendo parte inseparável da Rússia”. Os líderes ocidentais não deveriam estar surpresos pela atitude implacável de Putin nessa “apropriação de terras”. Não estariam se conhecessem a história russa.
Como Putin salientou em seu discurso, o cristianismo russo tem sua origem na Crimeia. Segundo as crônicas medievais, foi em Quersoneso, antiga colônia grega da costa sudoeste da península, nos subúrbios da atual Sebastopol, que outro Vladimir, o príncipe de Kiev, foi batizado em 988, levando assim o cristianismo ao Rus de Kiev, a imprecisa confederação de principados eslavos da qual deriva a identidade nacional da Rússia.
A Crimeia esteve dominada durante 500 anos por tribos turcas e tártaras, mas depois da sua anexação por parte da imperatriz russa Catarina, a Grande, em 1783, os russos voltaram a cristianizá-la.
Para Catarina, a Crimeia era o paraíso meridional da Rússia, um jardim das delícias onde os frutos do seu Governo cristão ilustrado poderiam ser saboreados e mostrados ao mundo que estava além do mar Negro. Ela gostava de se referir à península por seu nome grego, Táuride, mais do que como Crimeia (Krym), seu nome tártaro. Pensava que desse modo vinculava a Rússia com a civilização helenística de Bizâncio.
A imperatriz concedeu terras à nobreza russa para que estabelecesse magníficas propriedades ao longo da montanhosa costa sul, que rivaliza em beleza com o Amalfi. A partir de então, a Crimeia passou a ser sem dúvida o lugar favorito para as férias da elite russa, preferência que milhares de turistas soviéticos conservaram no século XX.
A Crimeia era a linha tectônica que separava a Rússia do mundo muçulmano, divisão religiosa sobre a qual se assentou a formação do império russo. A partir de Sebastopol, a frota do mar Negro podia impor a vontade do czar ao Império Otomano, assegurando o controle da Rússia sobre os estreitos que conduzem ao Mediterrâneo.
Em 1854, o assédio a seus frágeis vizinhos turcos levou a Rússia a se envolver na Guerra da Crimeia contra todos os Estados ocidentais, exatamente da mesma forma como o assédio aos ucranianos a colocou à beira de uma nova Guerra da Crimeia 160 anos depois.
Entre aquela situação e a atual existem paralelos evidentes.
O czar Nicolau I havia exercido um governo autocrático ao longo de quase 30 anos. Ninguém ousava desafiá-lo. A oposição tinha sido silenciada pela censura e a repressão policial, sobretudo depois das revoluções democráticas europeias de 1848, que o czar temia que pudessem se estender para a Rússia.
Quatorze anos de autoritarismo exerceram em grande medida o mesmo efeito sobre Putin, evidentemente inquieto perante a possibilidade de que a revolução ucraniana pudesse dar nova vida à oposição democrática na Rússia.
O velho projeto do czar era dividir o Império Otomano para perpetuar sua fragilidade e sua subordinação à Rússia e mantê-lo à distância das potências ocidentais. Os planos de Putin para a Ucrânia provavelmente são os mesmos.
Nicolau I definia a missão da Rússia como a defesa dos cristãos ortodoxos que viviam sob domínio turco. Para ele, a Rússia era um império cristão que abrangia seus correligionários de outras nações. Foi assim que ele justificou a invasão dos Bálcãs sob controle dos turcos – no que foi o primeiro passo da Guerra da Crimeia – para libertar os sérvios e os búlgaros do domínio otomano e tomar Constantinopla, o centro de Bizâncio.
Os britânicos e os franceses saíram em socorro do Império Otomano, supostamente erguendo-se em favor dos princípios de liberdade e soberania territorial, mas na realidade movidos pelo desejo (alimentado pela fobia antirrussa da imprensa ocidental) de acabar com a “ameaça russa” contra a Europa.
De forma parecida, Putin define os interesses da Rússia como a defesa dos russos que vivem na Ucrânia. Como deixou claro na terça-feira, a razão para considerar catastrófica a ruptura da União Soviética é a enorme quantidade de russos que ficaram órfãos da sua pátria. “Milhões de russos foram dormir em um país e acordaram vivendo em outro.” Assim desculpa a invasão da Crimeia: libertar os russos do domínio ucraniano.
Quando entrou em guerra, Nicolau I estava furioso. Nenhum dos seus conselheiros foi capaz de refreá-lo quando se lançou contra os turcos, os britânicos e os franceses. Não suportava mais o Ocidente, a quem acusava de dupla moral e hipocrisia. Os franceses podiam arrebatar a Argélia dos otomanos (como fizeram em 1830), e os britânicos anexavam a cada ano um novo principado indiano, considerando essas ações justas; mas, quando os russos saíram em defesa dos seus correligionários nos Bálcãs, foram acusados de serem agressores que alquebravam o “equilíbrio de poder”.
O discurso proferido por Putin na terça-feira estava repleto de recriminações similares contra o Ocidente. Seus políticos “hoje dizem que uma coisa é branca, e amanhã que é preta”, afirmou com raiva. A propaganda do Kremlin – camuflada como informação no canal de TV Russia Today – acusa os líderes ocidentais de dupla moral e hipocrisia por apoiarem os referendos de Kosovo e Sudão do Sul, onde, argumenta, a mudança de regime seria útil aos seus interesses, mas opondo-se ao da Crimeia, onde não o é.
É difícil superestimar o profundo ressentimento dos russos em relação ao Ocidente. Eles se apressam em fazer referência à russofobia que, em certa medida, continua vigente como herança das posturas do século XIX e da Guerra Fria. A postura antiocidental de Putin fez sua popularidade aumentar na Rússia. Assim como Nicolau I, cujo retrato está pendurado na antessala do gabinete de Putin no Kremlin, o presidente está disposto a isolar seu país do Ocidente e possivelmente a lutar solitariamente contra este na defesa dos interesses da Rússia no mundo.
Mas, nesse ponto, as similitudes com o czar Nicolau começam a tomar um rumo diferente. Em 1854 o Ocidente era forte, e a Rússia, fraca. Com seu poderio industrial, os franceses e os britânicos estavam em condições de infligir uma humilhante derrota aos russos, mesmo precisando enviar suas tropas e seu material até a longínqua Crimeia.
Hoje em dia, o Ocidente está frágil. Não está preparado para fazer grande coisa no terreno militar, e pouco conseguirá de efetivo pela via das sanções econômicas para dissuadir Putin do seu provavelmente antigo projeto de dividir a Ucrânia ou lhe dar uma nova estrutura federal.
Há algo que o Ocidente possa fazer? Pode começar por contemplar a região do ponto de vista da Rússia; não aprovando as ações russas e não cedendo nem por um só instante na defesa dos princípios internacionais, mas compreendendo melhor a intensidade do que a Rússia sente em relação a esse tema complexo, porque uma coisa é certa: sem os russos, não há solução para a crise da Ucrânia.
Orlando Figes é autor de ‘Crimea: The Last Crusade’. Leia mais (em inglês): www.orlandofiges.co.uk
@orlandofiges