Mauro Santayana
Os grandes pensadores sabem que os conflitos bélicos, quando se iniciam, criam sua própria dinâmica e se desenvolvem conforme imprevisíveis movimentos. Os melhores generais são capazes de tomar as decisões certas, ainda que aparentemente insensatas. Nessas ocasiões, há um emaranhado de pequenos acasos, que costumam determinar os resultados. Uma batalha pode ser prevista – e hoje com precisão científica – em quase todos os seus detalhes. É possível, e hoje mais ainda com os computadores, calcular o poder de fogo do inimigo, analisar o estado moral de seus soldados, prever a velocidade do vento e a pressão atmosférica, antes de situar as peças de artilharia convencional ou de mísseis, e planejar o apoio aéreo.
Não obstante tudo isso, há sempre um fator desprezado, que pode mudar tudo. Esse fator é sempre humano. Embora possamos discordar de que a guerra é a continuação da política por outros meios, podemos, no entanto, entender que a ação militar, ainda em seus movimentos menores, depende da visão política. O que ocorre em cada batalha é o resumo do que ocorre nas guerras, menores ou maiores.
A guerra da Líbia, por mais os norte-americanos a quisessem, e por mais os serviços secretos franceses e ingleses estudassem a situação local há anos, está sendo de patética improvisação. Em primeiro lugar, a Líbia pouco tem a ver com seus vizinhos. Ali, o governo real, com as decisões que repercutem no dia a dia do povo, é exercido pelos chefes tribais, cuja autoridade não está apenas sob as tendas nômades, mas se estende aos seus súditos urbanizados. Entre esses chefes tribais e Kadafi há uma relação de fidelidade e proteção que não existe em nenhum outro país árabe. A grande astúcia do coronel, ao depor o rei Idris, foi mostrar o monarca como frívolo vassalo dos estrangeiros, e associar o ato de rebeldia nacionalista que liderou ao respeito pelos costumes ancestrais, entre eles a autoridade dos chefes dos grandes clãs do deserto.
Em análise publicada ontem por Le Monde, o coronel Michel Goya, das Forças Armadas Francesas, e pesquisador de estratégia militar, afirma que a capacidade de resistência de Kadafi foi subestimada – e superestimada a disposição de luta dos rebeldes. Ele é incisivo: a guerra aérea não basta para obter a rendição do chefe líbio. Com isso prevê que, ou o Ocidente recua – e ele acha que é necessário interromper os combates – ou será necessário invadir o país com tropas terrestres. Nesse caso, os aliados estarão com três guerras simultâneas. As outras duas, do Iraque e do Afeganistão, são consideradas perdidas. Enfim, como um redator de Der Spiegel t itulou uma série de fotos da Líbia, Die Welt geht zur Hölle: o mundo vai para o inferno.
Sob a pressão de Washington, a Turquia acedeu, ontem, a que a Otan assuma a responsabilidade pela ação contra a Líbia. Se isso ameniza a reação de alguns países ao comando anglo-francês das operações empreendidas até agora, não resolve a sorte da guerra. Todos os pretextos invocados – como os usados contra o Iraque e o Afeganistão ou no caso do Vietnã – não convencem as pessoas lúcidas do mundo. O bombardeio sobre a Líbia serve também de biombo para o recrudescimento da violência na Palestina e em Israel, como sempre por iniciativa de Tel Aviv. Espera-se nova invasão à Faixa de Gaza – como a de janeiro de 2009 – e outro veto de Washington a qualquer decisão do Conselho de Segurança contra Israel.
A opinião pública mundial está esperando que esses zelosos protetores da população civil atuem em Bahrein e no Iêmen com o mesmo ânimo com que atacam Kadafi, e que os defensores dos direitos humanos ajam contra a monarquia medieval da Arábia Saudita onde, segundo se informa, há mais de 30 mil prisioneiros políticos. Rara é a família que não tenha um de seus membros no cárcere.