Benghazi — Vestido a caráter, em um terno, Mansour Aied tem muitas razões para celebrar. “Vivo aqui desde quando nessa praça só havia cabanas”, diz , referindo-se à Praça da Libertação (Midan Tahrir), em Benghazi. Assim como a Praça Verde, no Centro da capital, Trípoli, o local foi rebatizado durante os meses de guerra civil para homenagear aqueles que se rebelaram contra os 42 anos de ditadura.
Benghazi é a segunda maior cidade da Líbia e berço do levante que derrubou o regime de Muamar Kadafi. Na quinta-feira, diferentes brigadas do leste do país envolvidas no conflito iniciado em fevereiro participaram de uma reunião na cidade. Foi o primeiro ensaio com o objetivo de formar o futuro Exército nacional.
A ocasião marcou o reencontro dos revolucionários (em árabe, thuwar) servindo em diferentes unidades por todo o país. Sobre a origem do terno de gala, Mansour conta que a roupa foi adquirida na cidade de Al-Bordi. “Estávamos em patrulha e encontramos ancorado o iate de Saadi Kadafi (um dos filhos do ex-líder líbio). Acredito que o terno e o chapéu sejam dele.” As forças revolucionárias são compostas por uma mistura de voluntários e unidades desertoras.
Agora, com o fim das operações militares contra as forças do antigo regime, o desafio imediato é assegurar que as milhares de armas espalhadas por todo o país sejam entregues a uma autoridade central, ainda provisoriamente representada pelo Conselho Nacional de Transição (CNT), formado no início do levante. As operações da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aliança militar ocidental, serão encerradas hoje, apesar de o CNT ter solicitado a permanência das tropas até o fim do ano. Soldados britânicos que participaram da ação contra as forças leais a Kadafi começaram a deixar o país e retornar para o Reino Unido.
Diante da incerteza sobre o futuro, a expectativa é sobre como será feita a transição para a tão proclamada democracia. O país não dispõe de instituições políticas sólidas e o trabalho de reconstrução deve ser longo. No exterior, há o receio de que o vácuo de poder criado com a queda do antigo regime dê espaço para que grupos fundamentalistas ganhem força, minando as aspirações democráticas que embalaram a revolução de 17 de fevereiro.
A suspeita ganhou fôlego após a declaração do primeiro-ministro interino, Mahmoud Jibril, durante a cerimônia oficial que declarou a liberação da Líbia, no último domingo, em Benghazi, de que a sharia, ou lei islâmica, deverá servir como base das futuras leis do país. Mesmo com uma enorme diversidade tribal, a religião muçulmana une a grande maioria da população líbia. A religiosidade se faz presente em vários aspectos da cultura no país, como no já tradicional rassasal’farah, ou tiros de celebração, que, em Benghazi, começam no fim do dia e se estendem até a madrugada. A manifestação, embora espontânea, já se tornou parte do dia a dia da cidade.
Os rebeldes que retornam da frente de batalha disparam suas armas aos gritos de Allah u Akbar — Deus é grande. Mais do que uma conotação religiosa, a exaltação expressa muitas vezes apenas um sentimento de alegria, como afirma Haitan Sherri, 27 anos, que, antes da revolução, trabalhava como motorista de ônibus e voltou à cidade com a libertação do país, há uma semana. “Só estou feliz por não ter mais que ir para o front.” O mesmo afirma o voluntário e fã da Seleção Brasileira Noor Din Ashur, 22, ferido durante o cerco a Sirte, cidade natal do ex-ditador e onde Kadafi se escondeu até ser morto. “Estou feliz, e só agradeço a Allah.”
A maioria da população ainda vive a euforia das duas grandes conquistas: o fim dos confrontos e a morte de Kadafi. O futuro democrático do país, embora desejado, parece exigir mais um pouco de espera. “A Líbia já era islâmico antes da guerra. É natural que seja regido por leis islâmicas.
Ao contrário de alguns outros países, somos moderados”, afirma Mohammed Jauda, um publicitário de 38 anos que não acredita na imposição da sharia de maneira repressiva. Jauda lutou no front em cidades como Brega e Adjabiya e retornou a Benghazi há cerca de um mês.
Ele acredita que as conquistas da revolução não devem ser prejudicadas pelas divisões internas do país. “Muito ou pouco religiosos, estivemos unidos enfrentando os mesmos riscos, rezávamos juntos entre as batalhas e a vitória nos uniu ainda mais”, diz. “Nosso maior problema são aqueles que não lutaram quando era mais necessário, e agora tentam se aproveitar do nosso esforço buscando cargos e vantagens.”