IGOR GIELOW
Tomando uma xícara de chá devidamente misturado a leite engordurado e açúcar, como se faz no Paquistão, um diplomata ocidental discorre sobre o estado das coisas em Islamabad. "Isso aqui é a capital da espionagem do mundo, e, agora, a guerra está estourando para o mundo real", disse ele à Folha.
O cenário da conversa era um dos locais prediletos de jogadores deste esporte perigoso, o lobby do hotel Serena. Assim como o Marriott ou o Islamabad Club, é um alvo primário de atentados.
O delicado equilíbrio de forças sofreu um grande abalo na turbulência pós-Osama bin Laden. Na sexta-feira, a imprensa paquistanesa vazou um nome que seria do chefe da CIA no Paquistão.
Esse tipo de informação, mesmo falsa, compromete operações inteiras. O dedo acusador da CIA, devidamente publicado na imprensa americana, apontou para uma vingança por conta das críticas dos EUA à presença do terrorista no país. De quem? Oras, do ISI.
A sigla inglesa para Inteligência Intra-Serviços é onipresente quando se fala em motivos de Estado, conspirações ou o aumento do gás natural que abastece tantos carros por aqui. Surgida em 1948, é uma agência com cerca de 10 mil homens que combina operações de inteligência das Forças Armadas (daí o "intra-serviços").
Da criação do Taleban afegão à prisão por conveniência do mentor do 11/9, fracassos e sucessos incríveis são atribuídos ao ISI. Há outras duas agências importantes e uma dúzia de secundárias, mas o ISI leva a fama.
Há uma impressão generalizada no país de que nada escapa ao "anjos", como são conhecidos os agentes, por sempre usarem em branco a tradicional roupa paquistanesa que combina um camisão sobre calças largas.
Os "anjos" se contrapõem à presença da poderosa CIA. De um relacionamento longo, que se intensificou na criação da resistência de gente como Bin Laden à invasão soviética do Afeganistão (1979-1989), à desconfiança mútua ao longo da "guerra ao terror", hoje restam muitos ressentimentos.
EUA E PAQUISTÃO
Ao longo dos anos, os EUA acusaram o ISI de fazer jogo duplo com extremistas islâmicos. O ISI tem dificuldade em lidar com os grupos radicais que fomentou para desestabilizar a rival Índia.
Enquanto isso, algo entre cem e 500 agentes americanos se espalham pelo país, centrados em Islamabad. Um deles, Raymond Davis, criou baita confusão ao matar dois paquistaneses em janeiro.
Isso porque não é segredo na comunidade de inteligência local que eles eram do ISI, apesar de Davis os ter acusado de roubo.
O ISI vazou tudo o que sabia da vida do americano, que se viu preso sob risco de ser julgado aqui. No fim, pagaram US$ 2,4 milhões às famílias das vítimas, e ele foi solto, mas o ambiente ficou mais envenenado.
Num canto do lobby, dois homens de ternos e óculos escuros conversam. A Folha já tinha visto um deles em 2008, filmando um protesto de advogados. Cinegrafista? "Não, não, são da CIA", diz o diplomata, revelando que a prática paquistanesa de infiltrar espiões como repórteres não é exatamente incomum.
Não deveria ser surpresa, até porque não iria encontrar um americano tomando chá na rua: eles só andam em jipões, ficam trancados em casas seguras e, até pela inexistência de vida noturna, frequentam só bares de hotel.
Nem a sede do ISI lembra a sua função; parece um campus universitário com grama aparada e prédios com painéis de madeira. Na capital mundial dos espiões, nada é o que parece. Aparentemente, ao menos.