Por Adriana Carranca/Especial para O Globo
MAKHMOUR, IRAQUE — “Você está vendo aqueles carros?”, perguntou o comandante Abdullah Sabak, à frente da força de ataque curdas peshmergas no front de Baqat, apontando para duas picapes que cruzavam em alta velocidade o campo diante da barricada, levantando uma nuvem de poeira. “São combatentes do Estado Islâmico”. Era possível vê-los movimentando-se ao longo da trincheira. “Toda essa faixa que você vê está sob o controle deles”, diz o comandante, do alto da torre no front de batalha, girando o dedo de leste a oeste. Minutos depois dois morteiros atingiram a cidade de Makhmour, sete quilômetros para dentro do território curdo, onde está o centro de operações dos peshmergas.
— Eu ouvi o som dos disparos dos morteiros quando estávamos na torre, mas não quis assustá-la. É provável que tenham sido disparados daqueles carros — revelou o comandante mais tarde, na base. Do alto da trincheira, era possível avistar Mohmadia, Kharbania e Rashdia, três aldeias controladas pelo EI. No horizonte, focos de fumaça. — Eles queimam óleo para fazer fumaça e atrapalhar a visão dos drones e evitar que a força aérea dos EUA identifique suas posições exatas.
Os ataques têm sido constantes nesse front; o EI chega a disparar vinte morteiros por dia, diz o comandante. “É apenas uma demonstração de força. Eles querem dizer: não ouse avançar sobre nosso território, pois estamos bem armados a espera de vocês”, diz Sabak. Um soldado no front mostra à reportagem de O GLOBO os locais atingidos pelos últimos ataques, um deles a algo como sete metros do posto onde estamos. Em março, cerca de cinquenta combatentes atravessaram o campo diante da trincheira e fizeram um ataque por terra, durante a madrugada. Um general foi morto.
REGIÃO CONCENTRA 60% DO PETRÓLEO
Essa faixa está localizada entre as províncias curdas de Kirkuk, Erbil e Nineveth, disputadas pelo Estado Islâmico por concentrarem mais de 60% do petróleo iraquiano. Nineveth é onde se localiza Mosul, a segunda maior cidade do Iraque, ocupada pelos militantes islâmicos há um ano, para o horror da comunidade internacional.
O avanço do EI para o Norte do Iraque teve início com uma grande ofensiva da coalizão sunita liderada pelos jihadistas em junho do ano passado. A área era ocupada por forças do governo central de Bagdá, liderado pelos xiitas desde a invasão americana que derrubou o ditador sunita Saddam Hussein. Diante da ofensiva sunita do EI, os soldados xiitas fugiram em direção a Bagdá e seu reduto, no Sul do Iraque. A debandada abriu espaço para a ocupação dos peshmergas, que desceram as montanhas para defender o que entendem há muito como parte do Curdistão iraquiano, que compreende as províncias do Norte do país, nunca reconhecido pelo governo de Bagdá.
A ocupação das forças curdas de um lado, o recuo das tropas xiitas do governo e o avanço dos sunitas do EI no corredor central do país definiram novas fronteiras no Iraque, dividindo-o em três regiões claras: os curdos ao Norte, os sunitas no Centro e os xiitas no Sul de Bagdá.
Ryan Crocker, que serviu como embaixador dos EUA no Iraque de 2007 a 2009, descreve a divisão como Shiastan, Jihadistan e Curdistão, em referências às áreas de maioria xiita, sob controle do governo de Bagdá; os jihadistas sunitas insurgentes que compõem o Estado Islâmico; e os curdos no domínio do enclave semiautônomo rico em petróleo no Norte do país.
Ao entrevistar soldados e comandantes peshmergas no front, fica claro que a guerra não é para derrotar o EI, mas apenas de expulsá-lo das terras curdas, ao norte do Rio Tigre. Os peshmergas, com o apoio da comunidade internacional, preparam uma grande contraofensiva em Mosul, que fica dentro deste território, e têm se concentrado em defender suas posições nessa fronteira imaginária de cerca de 540 quilômetros, que vai de Faysh Khabur, na província de Duhok, Noroeste do Iraque, a Diyala, Nordeste de Bagdá.
— Nós estamos caminhando para algo como três estados no Iraque: o curdo, o sunita liderado pelo EI e o xiita sob o governo de Bagdá — disse o general Mahal Younis, no comando de uma linha de frente de batalha contra o EI que se estende por 70 quilômetros ao longo dessa fronteira imaginária, onde seus homens ergueram uma trincheira de trinta metros do nível do chão, separando o que entendem como território curdo sob controle dos peshmergas, de um lado, e sunita sob domínio do EI, do outro. — Ainda não temos uma fronteira formal, então, erguemos essa trincheira para marcar o território curdo. Este é o nosso Estado agora.
TRINCHEIRA DIVIDE A FRONTEIRA
Ao longo dessa trincheira, o general mantém seus soldados em postos a menos de um quilômetro de distância uns dos outros. Foi da torre de vigilância de um destes postos que O GLOBO avistou a movimentação de veículos do EI, ao alcance dos olhos, do lado da trincheira controlado pelos jihadistas, de onde lançam ataques constantes contra as terras curdas. Na base, o general Mahal Younis mostra um mapa indicando que a cerca de dois quilômetros existe uma linha com as posições do EI, marcadas pela bandeira preta do grupo. Segundo o general, o EI ergueu uma trincheira semelhante, apinhada de minas terrestres, que agora formam a fronteira do que seria o Estado sunita.
Questionado sobre por que os peshmergas não avançam sobre esse território, ao alcance dos olhos, o general responde:
— Desde que não venham para as áreas curdas, não vamos atacá-los. Nós só queremos controlar as áreas curdas, e não árabes.
A luta dos curdos por um Estado independente é centenária. Durante a ditadura de Saddam Hussein, muitas dessas áreas foram entregues a árabes. Muitas dessas famílias agora estão sendo expulsas das terras curdas. A divisão do Iraque e a redefinição de fronteiras por linhas étnicas e religiosas alimenta o sectarismo.
— No passado, Saddam roubou nosso petróleo, habitou essas terras de árabes e matou meu povo. Agora essa área é toda é curda — diz o general, sem rodeios.
Antes cidades ocupadas por árabes e curdos, Baqart e Rwallah, próximas do front contra o EI, são hoje cidades fantasmas. Os escombros evidenciam os ataques aéreos americanos que ajudaram os peshmergas a reconquistar esse território das mãos dos combatentes do EI. A sete quilômetros do front está Makhmour, onde fica uma das bases dos peshmergas. Em um armazém, estão enterrados mais de uma centena de combatentes islâmicos, mortos nos confrontos pelo controle do território. Após o recuo do EI, alguns moradores voltaram à cidade, mas são majoritariamente curdos.
— Você está vendo aquela família? — pergunta o soldado peshmerga M.S., que pediu para não ser identificado, sobre quatro pessoas escoltadas por combatentes armados para fora da base. — São árabes e nós os estamos transferindo daqui. Você sabe, o EI é formado por árabes sunitas, não podemos mais confiar nos árabes! Quando encontramos árabes neste território, primeiro verificamos se têm ligações com o EI. Se tiverem, os prendemos. Se não, os escoltamos para longe daqui.
Para onde?
— Nos os levamos até depois de Kirkuk e os soltamos, para irem para onde quiserem, desde que seja fora das áreas curdas. Mas não diga a meu comandante que eu contei isso a você.