Desde que dezenas de milhares de manifestantes se reuniram na Praça Tahrir, no Cairo, em um movimento que deu início ao primeiro dia da revolução exatamente 10 meses atrás, o governo de Obama tem se esforçado para encontrar o equilíbrio certo entre a democracia e a estabilidade. Nas primeiras horas da manhã de sexta-feira, o presidente Barack Obama emitiu um pedido em paralelo ao das ruas árabes para que as forças armadas egípcias rapidamente entreguem o poder a um governo civil e democraticamente eleito.
Ao fazê-lo, o presidente se abriu a possíveis riscos, criando uma barreira entre os Estados Unidos e os militares egípcios, que, talvez, mais do que qualquer outra entidade na região, serviu durante 30 anos como um baluarte ao proteger uma das principais preocupação dos EUA no Oriente Médio: o tratado de paz Camp David, de 1979, entre o Egito e Israel.
Além disso, ao alertar explicitamente para que os militares rapidamente comecem a "transferência total de poder" para um governo civil de uma "forma justa e inclusiva", a Casa Branca notificou que o exército do Egito continuará a receber apoio do governo de Obama somente se, por sua vez, eles apoiarem uma verdadeira transição democrática.
O comunicado, emitido às 3h03 em Washington, foi programado para coincidir com a notícia da escolha de um novo primeiro-ministro pelos militares e para se adiantar em relação aos protestos no Cairo, que atraíram centenas de milhares de pessoas, o maior compadecimento público desta tumultuada semana. Ele indicou, segundo especialistas em política externa, o início de uma mudança na maneira como os Estados Unidos negociam dentro de uma região árabe que sofre rápidas mudanças e tenta preservar os acordos de paz entre Egito e Israel.
"O que estamos fazendo agora é dizendo aos militares que se eles pensam que irão permanecer no poder, nós não iremos apoiar isso", disse Martin S. Indyk, diretor de política externa do Instituto Brookings e ex-embaixador dos Estados Unidos em Israel. "Nós queremos que eles desempenhem o papel de ponto de partida para a democracia, e não o papel de uma junta militar."
Mas a estratégia "é de alto risco, porque os que mais podem se beneficiar dela são as pessoas que não necessariamente têm nossos melhores interesses em mente – os islâmicos – que podem não ser tão apegados ao tratado de paz da mesma maneira que os militares", disse Indyk. "Estamos essencialmente ficando do lado da democracia."
A estratégia pode colocar em risco os laços de Washington com os militares do Egito, bem como desencadear uma reação no Egito caso os EUA, que não são muito populares devido a uma longa história de apoio ao ex-presidente Hosni Mubarak, sejam vistos como um país que parece querer interferir na política local. Mas oficiais do governo disseram que talvez o maior risco possa ser do público egípcio, que terá de ser conquistado caso o país se torne democrático, de acordo com as expectativas do governo.
O governo Obama parece ter deixado claro suas intenções, tentando posicionar os Estados Unidos de tal forma que, independentemente de quem sair por cima – o Exército ou os manifestantes – o país ainda irá manter alguma credibilidade e a capacidade de influenciar o governo e assegurar um certo nível de estabilidade no Egito, além de continuar a defender o acordo de paz egípcio-israelense, que veem como essencial para a estabilidade da região.
Oficiais do governo Obama disseram na sexta-feira que o país continuaria a trabalhar diretamente com os militares egípcios, que ainda recebem mais de US $ 1,3 bilhão por ano em ajuda dos EUA. Mas diplomatas americanos disseram que existe uma preocupação crescente sobre a forma como os militares têm lidado com as últimas manifestações e particularmente sobre as táticas das forças de segurança em confrontos com manifestantes essa semana, que mataram pelo menos 41 civis e feriram mais de mil.
Oficiais de alto escalão da Casa Branca, do Departamento de Estado e do Pentágono estiveram ao telefone com os seus semelhantes egípcios pedindo moderação. O secretário de Defesa Leon E. Panetta ligou ao marechal de campo do exército, Mohamed Hussein Tantawi, na noite de quarta-feira para expressar "o quanto os EUA acreditam na questão de responder às aspirações do povo egípcio com legitimidade", disse um oficial sênior na sexta-feira, pedindo para permanecer no anonimato. Anne W. Patterson, embaixadora dos Estados Unidos no Egito, também tem tido conversas com as autoridades locais.
Oficiais do governo também conversaram com o tenente-general Sami Hafez Enan, o segundo no comando militar, que é visto como um potencial sucessor de Tantawi e talvez seja mais propício a fazer uma mudança rápida para a democracia.
O anúncio de quinta-feira na mídia estatal de que os generais do exército estavam planejando indicar o ex-tenente do governo de Mubarak, Kamal Ganzouri, 78 anos – um burocrata que é visto como a serviço do conselho militar – como o novo primeiro-ministro incentivou uma enxurrada de emails e telefonemas em pleno Dia de Ação de Graças entre os oficiais da Casa Branca, do Departamento de Estado e do Pentágono.
"Os Estados Unidos acreditam que o novo governo egípcio deve ter autoridade real imediatamente", disse o comunicado da Casa Branca. "Mais importante", acrescentou, "acreditamos que a transferência integral do poder a um governo civil deva acontecer de forma justa e inclusiva, que responda às aspirações legítimas do povo egípcio o mais rapidamente possível".
A declaração foi destinada a ser um marco, segundo um oficial do governo. "Nesse momento de tensão crescente é importante que sejamos o mais específicos possível para que todos entendam o que foi acordado e quais serão os próximos passos", disse um oficial do governo, falando sob condição de anonimato . "Estamos focados em uma transição completa para um novo governo civil dentro do prazo anunciado. Precisamos ter certeza de que estamos com os nossos olhos nessa meta."
O oficial acrescentou que "embora este não seja um juízo de valor" sobre a indicação de Ganzouri, "queremos garantir que o novo primeiro-ministro seja consistente com as nossas metas para a transição de poder." Especificamente, o governo quer que um civil tenha autoridade sobre o Ministério do Interior e o policiamento em geral, além de questões como o planejamento das eleições.
Especialistas em política externa disseram que o comunicado, vindo do secretário de imprensa da Casa Branca, Jay Carney, foi uma medida significativa na pressão internacional feita sobre os generais, sobretudo tendo em conta que o Exército é a instituição mais poderosa do Egito e tem um crucial apoio dos Estados Unidos em um país onde o sentimento antiamericano e movimentos políticos islâmicos estão em alta.
Por mais de 30 anos, os EUA viram os militares egípcios como a salvaguarda do acordo de paz de Camp David, que foi assinado por Anwar Sadat e Menachim Begin em 1979. Quando Obama rompeu com Mubarak esse ano, oficiais do governo ao mesmo tempo procuraram garantias de que os militares egípcios liderariam a transição para a democracia e continuariam a defender o tratado.
Desde então, os defensores da democracia do Egito e os partidos de oposição do país, incluindo a Irmandade Muçulmana, em sua maioria indicaram que, também, continuariam a defender o tratado, embora com algumas possíveis modificações, como o número de tropas na península do Sinai.
Mas ainda há incerteza sobre um novo governo civil ser tão apegado ao tratado como os militares egípcios, razão pela qual o governo americano tem tratado o Egito com tanto cuidado. Ao mesmo tempo, os EUA também têm se esforçado para construir relações com os novos líderes políticos do Egito.
De todos os países que passam por tumultos no Oriente Médio esse ano, não há nenhum mais importante para os interesses dos EUA do que o Egito. Os EUA podem se dar ao luxo de não atuar na Síria, onde a América tem tido pouca influência por décadas, podem ficar ao lado da família real do Bahrein, onde está baseada a Quinta Frota dos Estados Unidos, mas que não é visto como crucial para influenciar a região.
Mas o Egito é diferente. "Em termos do peso de um único país, o Egito supera todos eles", disse Rob Malley, diretor do programa para o Oriente Médio e Norte da África do International Crisis Group. "A razão para isso é o seu tamanho, a sua população, o seu papel histórico em influenciar a opinião pública árabe e, claro, do ponto de vista dos Estados Unidos, por causa de seu acordo de paz com Israel."
Por Helene Cooper