Rafael Spuldar
As empreiteiras brasileiras aumentaram fortemente sua presença em países da América Latina nos últimos dez anos, graças a financiamentos públicos. No entanto, vários projetos dessas empreiteiras são ou foram cercados de polêmicas, sendo contestados por grupos locais e movimentos sociais.
O caso mais recente ocorreu na Bolívia. Na última segunda-feira, o presidente Evo Morales promulgou uma lei que transforma em "zona intocável" a reserva indígena de Tipnis (Território Indígena Parque Nacional Isidoro Sécure), no centro do país, onde a empreiteira OAS construía uma rodovia.
A obra de cerca de 300 quilômetros, com um custo aproximado de US$ 420 milhões (R$ 727 milhões), motivou protestos por parte dos indígenas, que promoveram uma caminhada de mais de dois meses até a capital, La Paz, a fim de pressionar Morales a desistir do projeto.
Somente na América Latina, as cinco maiores empreiteiras brasileiras – Odebrecht, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, OAS e Camargo Corrêa – realizam atualmente obras em pelo menos 16 países, fora o Brasil.
Com a ajuda do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), essas empresas expandiram suas operações fora do país nos últimos dez anos, conquistando mercados principalmente na América Latina e na África.
Entre 2001 e 2010, o desembolso de financiamentos do banco para obras de empreiteiras brasileiras no exterior teve uma alta superior a 560%, saltando de US$ 194,5 milhões, dez anos atrás, para US$ 1,3 bilhão no ano passado. Entre janeiro e julho deste ano, os desembolsos foram de US$ 776 milhões.
Hidrelétricas
Além da rodovia na Bolívia, as questões mais controversas envolvendo empreiteiras brasileiras na América Latina estão ligadas a construções de usinas hidrelétricas em territórios indígenas e em zonas com grande área florestal nativa.
Um exemplo é a usina de Inambari, no Peru, cuja construção deveria ter sido efetuada em uma área de floresta pela brasileira OAS, como parte de um projeto de integração energética entre os dois países.
Após anos de protestos de integrantes da comunidade local, o governo peruano anunciou em junho deste ano a cassação da licença provisória para as obras, que estão suspensas.
Pelo menos outros dois projetos de hidrelétricas construídas com capital brasileiro no Peru são alvo de protestos: as usinas de Pakitzapango, no rio Ene, e Tambo 40, no rio Tambo, que ainda estão em fase de estudos.
Integrantes da tribo Asháninka alegam que as obras seriam uma ameaça à vida dos cerca de 10 mil indígenas que vivem na região.
Já no Equador, a construção de outra hidrelétrica gerou um episódio de tensão diplomática. Em 2008, o presidente equatoriano, Rafael Correa, embargou os bens da empreiteira brasileira Odebrecht, que construiu a usina de San Francisco, e impediu a saída de funcionários da empresa do país.
O Equador exigiu o pagamento de uma indenização por parte da Odebrecht devido a supostas falhas no funcionamento da hidrelétrica, além de entrar com uma ação internacional para suspender o pagamento da dívida de US$ 243 milhões contraída com o BNDES para a construção da usina.
O episódio levou o governo brasileiro a chamar seu embaixador em Quito para consultas.
Na Nicarágua, houve protestos envolvendo as obras da hidrelétrica de Tumarín, sob encargo da empreiteira brasileira Queiroz Galvão.
Em 2010, camponeses chegaram a invadir as instalações da empresa, em protesto contra os valores das indenizações propostas pela empresa. No entanto, os ressarcimentos já foram pagos e as obras foram iniciadas no início deste mês.
Aliança entre Estado e empresas
Para a pesquisadora e cientista política Ana Saggioro Garcia, a ação de empreiteiras no exterior está ligada a políticas públicas brasileiras, já que é o Estado, por meio de financiamentos como os do BNDES, que viabiliza a participação das empresas em obras no exterior. Garcia afirma que este tipo de aliança tende a agravar eventuais conflitos.
"É uma aliança entre empresa e Estado para a realização de um dado projeto, em um marco de um projeto de desenvolvimento específico, contra as populações locais que vivem e trabalham no território", disse a pesquisadora à BBC Brasil. "É um embate entre atores desiguais."
Na opinião de Garcia, existe uma diferença entre obras como as de usinas hidrelétricas e estradas e a instalação de indústrias brasileiras no exterior, por exemplo.
"As obras mexem com território, com lugar de vida. Existe uma vida naqueles locais que precisa ser transformada", diz.
No caso boliviano, a pesquisadora vê Evo Morales como um presidente que, desde que chegou ao poder, sempre defendeu um projeto voltado para o campo e para as pequenas comunidades, mas que, devido a questões políticas internas, se viu obrigado a aliar-se ao Brasil e, segundo ela, ceder a um projeto mais voltado ao desenvolvimento.
Já o professor de Relações Internacionais da FGV-RJ Maurício Santoro afirma que a maioria das obras realizadas por empresas brasileiras no exterior não resulta em conflitos ou crises políticas e diplomáticas.
Segundo ele, isto afeta uma minoria de empreendimentos envolvendo regiões sensíveis, como a Amazônia ou territórios indígenas. "Esse é um problema que ocorre também com grandes obras realizadas no Brasil, como [as usinas] de Belo Monte e Jirau", afirma.
Embora considere legítimos os interesses do governo em promover empresas brasileiras e realizar investimentos no exterior, o especialista acredita que o governo do Brasil precisa tomar mais cuidado com empreendimentos que tenham o potencial de gerar disputas.
Santoro afirma, por exemplo, que o BNDES deve ser mais cuidadoso para avaliar as dimensões sociais e ambientais das obras às quais financia. Além disso, ele vê a necessidade de o Brasil assinar com outros países Acordos de Promoção e Proteção de Investimento (mecanismos conhecidos como APPIs) para evitar conflitos como os da Bolívia.
Procurada pela reportagem da BBC Brasil, a empreiteira OAS não se manifestou a respeito da construção da rodovia na Bolívia.