Fabio Murakawa
A maneira como o governo do presidente Evo Morales conduz um processo de "nacionalização" de quase 130 mil automóveis sem documentação na Bolívia está causando irritação em autoridades brasileiras. Há uma grande insatisfação com a demora na devolução de veículos que foram roubados no Brasil e apreendidos no país vizinho.
Em entrevista ao Valor, a presidente-executiva da Aduana Nacional da Bolívia, Marlene Ardaya, disse ser "da vontade do Estado Plurinacional e do presidente Evo Morales proceder a devolução o quanto antes", mas afirmou que isso ainda não tem prazo para acontecer. Segundo ela, a devolução tem que ser feita por meio de processos na Justiça boliviana, enquanto autoridades brasileiras ouvidas pelo Valor desejam que isso ocorra por meio de processo administrativo, mais rápido.
"[A devolução] se aplicaria, sobretudo, por parte judicial. E, para fazer a requisição para que a autoridade competente boliviana proceda a sua devolução, o país [Brasil] também teria que demonstrar o direito de propriedade desse veículo como tal. Esse é um procedimento no qual ainda se está trabalhando", afirmou Ardaya.
Quando foi iniciado o processo de regularização dos veículos, em 2 de julho, o Ministério da Justiça enviou à Bolívia uma lista com cerca de 2,6 milhões de carros roubados e ainda não recuperados no Brasil desde o ano 2000. Para Ardaya, a "antiguidade das denúncias" dificulta a identificação desses automóveis. Além disso, segundo ela, alguns desses veículos não necessariamente tiveram a Bolívia como país de destino, mas podem ter apenas transitado pelo país.
De um total de 128.059 pedidos de registro de automóveis sem documentos feitos nesse processo de "nacionalização", 4.123 são de fabricação brasileira, segundo Ardaya. Confrontando os dados fornecidos pelos proprietários via internet com a lista enviada pelo Brasil, as autoridades bolivianas chegaram à constatação de que 1.613 eram fruto de roubo. "Portanto, esses veículos não podem ser nacionalizados", disse.
Segundo Ardaya, o processo de legalização identificou ao todo 8.000 veículos roubados. A maior parte tem origem no Chile, seguido por Brasil, Argentina e Peru. Para ela, isso comprova que a Bolívia não é um paraíso para os contrabandistas.
"Consideramos que esse é um tema de vital importância para o Estado pela imagem que tem a Bolívia. Em algum momento se disse que era um paraíso onde só havia veículos roubados. Mas ficou demonstrado pelas estatísticas que nós temos que são 8.000", afirmou.
Fontes do governo brasileiro dizem que, desses 1.613 automóveis, 200 já foram apreendidos e estão em pátios da Direção de Prevenção de Roubo de Veículos (Diprove) em diferentes cidades. O Brasil agora tenta pressionar a Bolívia a agilizar o processo de devolução.
"Todos os acordos negociados [com a Bolívia] preveem prazos mínimos pelos quais os processos de devolução têm que ser administrativos", disse uma autoridade brasileira ao Valor. "O processo de devolução tem que ser imediato com três requisitos: Boletim de Ocorrência, registro [do automóvel] no país de origem e o documento original de posse do proprietário original."
O processo de "nacionalização" boliviano se encerra no dia 7 de novembro, pouco mais de quatro meses após o seu início. O governo brasileiro vê uma rapidez anormal nesse processo e estranha o fato de que os requerentes não precisam comprovar de quem compraram os automóveis que tentam registrar.
Outro fator que preocupa Brasília é a visão predominante no governo Morales de que muitos bolivianos compraram seus veículos de "boa fé", ainda que esses fossem roubados. Também incomoda o argumento de que alguns desses carros teriam sido vendidos na Bolívia pelos próprios donos brasileiros, que depois reportavam o roubo no Brasil.
"Em alguns casos, os carros entraram [na Bolívia] pelo regime de turismo, com os próprios proprietários, para dar um golpe no seguro. Quer dizer, entrar na Bolívia, vendê-los em território nacional e, obviamente, declará-los também como roubados no Brasil", disse Ardaya. "Esse é um tema de discussão que merece ter um outro nível de análise, uma vez que tratar de comprovar isso estaria na mão das próprias seguradoras."
Para o governo brasileiro, entretanto, ainda que fique comprovado o golpe nas seguradoras, os veículos têm que ser devolvidos. "Não se pode querer transferir para o Brasil ônus de ter cometido um delito que limpa um delito cometido no outro lado da fronteira", disse a autoridade brasileira. "O fato é que, como [o carro] foi roubado, quem sofreu prejuízo foram as seguradoras. Grande parte das demandas é das seguradoras. De um jeito ou de outro, houve roubo."
Na visão dessa autoridade, não se pode pressupor boa-fé de alguém que compra um automóvel "a preços aviltados". Estima-se que os carros brasileiros sejam vendidos em território boliviano a cerca de 20% a 30% de seu valor de mercado. "Há cidadãos brasileiros lesados pelos roubos, que provocam um aumento no preço dos seguros no Brasil e alimenta a indústria do tráfico de drogas", afirmou.
Em audiência na Câmara dos Deputados no dia 23 de agosto, o procurador da República Raphael Perissé Rodrigues Barbosa disse que carros roubados no Brasil são trocados por pasta-base de cocaína na Bolívia. Ele afirmou na ocasião que a decisão do governo Morales de legalizar os veículos incentiva o aumento da criminalidade no país.
Perissé chegou a sugerir a adoção de medidas diplomáticas contra os bolivianos. "A Bolívia depende de recursos brasileiros. E a adoção de sanções comerciais e econômicas, por exemplo, pode evitar que se repita esse quadro desenhado pelo governo boliviano que traz tantos prejuízos à sociedade brasileira."
Para a autoridade brasileira, a Bolívia precisa "afirmar compromisso de segurança na fronteira e dar um recado aos traficantes de que essa forma de financiamento de sua atividade não vai continuar".