Nam et ipsa scientia potestas est
Atlântico Sul:
e se não for um projeto político só da ZOPACAS?
Fernanda Corrêa
Historiadora, estrategista e pesquisadora do
Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense.
fernanda.das.gracas@hotmail.com
Em janeiro deste ano, em Montevidéu, no Uruguai, o Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Antonio Patriota, durante a VII Reunião Ministerial da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS) defendeu um belo discurso sobre o aprofundamento da cooperação e da economia entre os países signatários da ZOPACAS e na proposta a estes países de inserir os princípios e valores que orientam a cooperação e o diálogo sul-atlântico no âmbito das Nações Unidas.
Os acordos sobre o Atlântico Sul
O Atlântico Sul é geoestratégico para o sistema internacional desde que a América foi descoberta. Durante a Segunda Guerra Mundial sua importância se deu pelas rotas marítimas e aéreas que abasteciam os Aliados em bases militares na África e na Europa. Na Guerra Fria, consolidou-se esta ideia, à medida que os soviéticos exerciam influência e presença na África. Segundo os geopolíticos e estrategistas brasileiros, das décadas de 1960 e 1970, quando os inimigos invadissem o Atlântico sul africano, para chegar ao da América do Sul não teriam maiores dificuldades. De acordo com estes estudiosos, civis e militares, resguardar os interesses brasileiros no Atlântico Sul justificaria o prolongamento da soberania brasileira para 200 milhas marítimas e o desenvolvimento autônomo de navios e submarinos convencionais e nucleares. Foi neste momento histórico que a Marinha do Brasil (MB) partiu para a construção das fragatas e do projeto do submarino de propulsão nuclear entre outras aquisições. Foi com estes estudos que se aprofundaram no seio das academias, em especial, na área de exatas, maiores estudos sobre o Atlântico Sul. Foram numerosos os cursos universitários de graduação e pós-graduação, com apoio das Forças Armadas (FA), que formaram engenheiros, físicos, químicos, biólogos, oceanólogos entre outras áreas e, que, mais tarde, em especial, ao longo da década de 1990, seriam empregados para pesquisar a plataforma continental brasileira, a fim de garantir soberania plena além das 200 milhas.
Em meados da década de 1980, o colapso da União Soviética (URSS) tornava-se cada vez mais evidente e era o momento dos países reverem seus planejamentos políticos, estratégicos e militares. Foi neste contexto, como uma resposta ao desarmamento mundial, que o Brasil, em 1986, tomou por iniciativa propor aos países sul americanos e da África, que circundam o Atlântico Sul, numa região desmilitarizada, ensejada na proposta de cooperação e paz. Assim, nasceu a ZOPACAS.
Imbuídos do espírito de paz mundial, os países, inclusive, falavam em empregar as Forças Armadas na segurança pública ou simplesmente extingui-las. Democraticamente, as FAs brasileiras se enquadraram nos princípios constitucionais de 1988 e, dentro de suas condições orçamentárias, conduziram seus programas estratégicos. Diante da falta de verbas, muitos destes programas estratégicos deixaram de ser prioritários nas FAs, como o projeto do submarino nuclear. Empresas estratégicas como a Embraer tiveram que demitir engenheiros e cientistas de áreas e programas críticos. Indústrias de defesa, como a Engesa, que consolidaram um mercado de exportação para os seus produtos, inclusive, no Oriente Médio, entraram em falência, outras tiveram que voltar a sua produção para atender, exclusivamente, o mercado interno.
Paralelamente à ZOPACAS, em 1987, a MB junto com a Petrobrás e universidades brasileiras deram início ao Programa de Levantamento da Plataforma Continental Brasileira (LEPLAC). Em 1996, este Programa foi finalizado, tendo concluída a etapa de aquisição de cerca de 230.000 km de dados sísmicos, gravimétricos, magnetométricos e batimétricos, mediante o suporte de quatro navios da Marinha do Brasil. De acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, instituída, em 1982, os países interessados em prolongar suas plataformas continentais além das 200 milhas deveriam apresentar à Comissão de Limites da ONU as características de tal pleito, juntamente com informações científicas e técnicas de apoio. Desta forma, os dados do LEPLAC foram fundamentais para, em maio de 2004, o Brasil reivindicar à esta Comissão, a soberania plena sobre 960 mil km2 , além das 200 milhas marítimas. Se o pleito total fosse reconhecido pela ONU, estaria sob jurisdição brasileira uma área marítima de 4,4 milhões de km², o equivalente à cerca da metade da área terrestre do território brasileiro, a qual se denominou Amazônia Azul. Em 2007, a ONU emitiu o seu parecer discordando da soberania sobre 19% da plataforma continental prolongada, reivindicada pelo Brasil. Em 2008, um novo pleito foi realizado à ONU, a fim do Brasil exercer soberania plena sobre os 960 mil km².
|
|
O Pré-sal e a Marinha do Brasil
A Petrobrás anunciou a descoberta de petróleo na camada Pré-sal em 2006 e o início da produção data de 2008. As informações técnicas do LEPLAC foram fundamentais também para a Petrobrás descobrir estas reservas de petróleo e óleo na camada Pré-sal, as quais se encontram nos limites das 200 milhas. Há indícios de que há reservas na plataforma continental brasileira que a ONU ainda não reconheceu. No que se relaciona à Convenção Sobre o Direito do Mar, há países que não ratificaram, como os EUA. E no que se relaciona à ZOPACAS, os EUA foram os únicos a votar contra e Bélgica, França, Itália, Japão, Luxemburgo, Holanda, Portugal e Alemanha são exemplos de países que se isentaram de votar.
Cientes de que há países que não compactuam com a Convenção, com a ZOPACAS e a ONU não aceitou o pleito total de prolongamento da plataforma brasileira, seria impensável a licitação de bloco de exploração do Pré-sal em águas internacionais? Seria impensável que alguma empresa estrangeira resolvesse explorar o Pré-sal?
Atualmente, o Oriente Médio está deixando de ser a principal rota de comércio de petróleo do mundo. Por se constituir como uma zona de instabilidade e por demandar o investimento cada vez mais pesado em defesa na região, em tempos de crises econômicas, é possível enumerar três motivos para, na últimas duas décadas, o Atlântico Sul ter deixado de ser uma rota alternativa do comércio de petróleo: (1) as descobertas de jazidas petrolíferas offshores na África, na década de 1990, (2) as descobertas petrolíferas na camada do Pré-sal no Brasil, em 2008, e (3) os conflitos armados e/ ou revolucionários em países exportadores de petróleo, sobretudo, na África e no Oriente.
Em 2009, a Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (CIRM) da MB criou um programa chamado Programa de Prospecção e Exploração de Recursos Minerais da Área Internacional do Atlântico Sul e Equatorial (PROAREA), sob responsabilidade do Itamaraty. Este Programa conta a participação de órgãos governamentais, da comunidade científica e da comunidade acadêmica. O objetivo deste Programa é identificar e avaliar a potencialidade mineral de áreas com importância econômica, política e estratégica para o Brasil, alocadas nas áreas internacionais do Atlântico Sul e Equatorial. Além de petróleo e gás, recursos como cobalto, ouro, diamante e urânio foram encontrados nos solos e subsolos do Atlântico Sul. Ao elaborar os códigos de mineração para cada um dos recursos minerais identificados nas águas internacionais, o Brasil poderá submeter seus planos de trabalho para a exploração destes recursos à Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos.
Percebe-se assim que, o Brasil também tem interesses fora de suas águas jurisdicionais a zelar. Não é a toa que a MB vem desenvolvendo e realizando aquisições tecnologias e sistemas para defender os interesses brasileiros nas suas águas jurisdicionais. Além de navios, submarinos convencionais e nucleares, caças, helicópteros, radares fixos e veículos não tripulados, a MB vem ampliando o Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (SisGAAz), o qual consiste num conjunto sistemas que coletam e compartilham dados e informações referentes à Amazônia Azul com os setores, como Petrobrás e IBAMA, e os tomadores de decisão. Além disso, este Sistema recolherá e integrará os dados oriundos de todo tipo de embarcação, aeronaves e satélites, possibilitando desde a coordenação de operações de busca e salvamento, coordenação do tráfego de navios e plataformas petrolíferas até à pesca ilegal, contrabando e pirataria.
Outros projetos políticos para o Atlântico Sul?
Em 2007, o Itamaraty já havia voltado a revitalizar os valores e princípios de cooperação e paz no Atlântico Sul durante a Declaração de Luanda, em Angola. Em janeiro de 2013, o Ministro Antonio Patriota voltou a revitalizar estes valores e princípios, inovando a proposta, ressaltando em seu discurso que, “a nenhum de nós interessa a militarização indevida do Atlântico Sul. A vocação de nossa região é a de diálogo e do entendimento, a da confiança recíproca. É com esses instrumentos que nos manteremos afastados do flagelo da guerra. Este é o sentido mais próprio de sermos uma “zona de paz”.
Diante de tamanhos gastos em Defesa Naval e Marítima da MB e de recursos humanos em ciência e tecnologia marinha da Petrobrás e da comunidade cientifica, nitidamente, há um desentendimento entre os setores que devem ou deveriam formular a política externa brasileira. Antes de o Brasil defender uma proposta de internacionalizar conceitos e valores, ditos universais, o Brasil deve buscar formular uma política externa, na qual a participação das suas Forças Armadas seja sentida.
O discurso é belo; mas, diante do cenário de guerras, ameaças, conflitos e ambições políticas no sistema internacional, este discurso tem que ser realista. Brasil, Argentina, Uruguai e países da África Austral, que compactuam com os princípios e valores da ZOPACAS, não se manterão afastados do flagelo da guerra por meio, exclusivamente, da internacionalização de valores e conceitos, como a cooperação e a promoção da paz. A militarização do Atlântico Sul é devida e imprescindível, inclusive, para a implementação da própria proposta de internacionalização de valores e princípios, ditos universais.
Outra questão, mas também não menos importante, é que, antes de pensar em internacionalizar princípios e valores da ZOPACAS, a cooperação com países africanos seja uma premissa importante e constante, a medida que africanos, argentinos, uruguaios e brasileiros têm interesses estratégicos comuns a defender.
E se o Atlântico Sul for uma política de Estado de outros países? E se um desses países que votaram contra ou se isentaram de votar a favor da ZOPACAS ou mesmo não ratificaram a Convenção Sobre o Direito Mar resolver explorar petróleo na camada Pré-sal?
Os estudos apontam que desde a década de 1960, há um projeto de Estado, liderado pelo ex-presidente francês, Charles de Gaulle, em transformar o Brasil em uma zona de influência militar, como alternativa à pressão estadunidense na Europa. Diante de tamanha pressão política e oferta estratégica, desde o governo de Nicolas Sarkozy e mantida pela atual gestão de François Hollande, é possível desconsiderar a ideia de que a França tenha retomado este projeto? A França foi um dos países que se absteve de votar sobre a ZOPACAS.
Neste contexto, há países europeus que, ou tendem a se reaproximar dos EUA, ou buscam novas estratégias para manter a funcionalidade e a operacionalidade de suas organizações militares, como a OTAN. Há vozes na política internacional que afirmam não mais haver interesse dos EUA em manter seu vínculo com esta organização. Em 2010, durante evento da Cúpula da OTAN, em Lisboa, Portugal propôs incluir o Atlântico Sul no novo Conceito Estratégico, o qual estava sendo elaborado pelos estados-membros desta Organização. A inclusão do Atlântico Sul neste novo Conceito pode ser entendida como uma proposta inovadora portuguesa para não pôr fim à existência da OTAN. Na época, a proposta portuguesa foi rechaçada pelo então Ministro da Defesa, Nelson Jobim. No entanto, Jobim já havia afirmado, em outros momentos, que já estava sendo sondado sobre possíveis iniciativas estadunidenses em realizar intervenções militares na plataforma continental brasileira. Em discurso oficial, na época, Jobim afirmou que maiores entendimentos sobre a presença dos EUA no Atlântico Sul só seriam possíveis se este país ratificasse a Convenção Sobre o Direito do Mar.
O fato é que, independente, de estar no Conceito Estratégico da OTAN ou não, o Atlântico Sul é uma área de interesse geoestratégico para os EUA e outros países, além dos membros da ZOPACAS. E quando os princípios unilaterais destes países se sobreporem aos multilaterais? Ou mesmo quando a sobrevivência destes países estiver ameaçada? Continuaremos a defender um belo discurso? Nem precisamos nos remeter à História; basta olharmos o nosso presente.