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Da KGB de Khrushchev a Putin: a história de influência militar e política da Rússia na África

No final de julho, a Rússia realizará pela segunda vez uma cúpula com países africanos em São Petersburgo. O evento é mostra da importante influência russa no continente africano que, nos últimos anos, têm sido marcada pela presença da milícia Wagner e da inteligência russa em eleições. Esses laços não se formaram sob o governo de Vladimir Putin, mas o presidente russo se aproveita de uma história que remonta à União Soviética.

(RFI) O avanço de Putin nos últimos anos sobre o continente africano não é uma estratégia casual. Com seu desejo de expandir as áreas de influência russa, o presidente russo percebeu na África o local ideal, dada a rica história das relações que a União Soviética estabeleceu com o continente, durante os longos anos da Guerra Fria.

O verão de 1960 foi muito tumultuado na futura República Democrática do Congo. O país conquistou a independência da Bélgica em junho, o primeiro governo democraticamente eleito foi instalado e, em setembro, as lutas pelo poder levaram o país a seu primeiro golpe de Estado, dado por Joseph-Désiré Mobutu, e, alguns meses depois, ao assassinato do primeiro-ministro Patrice Lumumba. Uma rápida sucessão de eventos que deixaria sua marca nesse ano de luta pela emancipação.

Naquele momento, a cerca de 11.000 quilômetros de Kinshasa, na Rússia, a política externa do Kremlin tomou um novo rumo à luz da crise no Congo Belga. Alexandre Chélépine, então chefe da KGB, percebeu que praticamente não tinha espiões ao sul do deserto do Saara. Os agentes secretos tinham uma forte presença no Egito, alguns no Magreb e boas amizades com o Partido Comunista na África do Sul.

Um grupo de espiões para salvar Lumumba

Essa rede, no entanto, era insuficiente para o chefe dos espiões soviéticos. Ainda mais porque o líder soviético Nikita Khrushchev, via a abertura para os países do Terceiro Mundo, especialmente na África, como uma prioridade para marcar sua ruptura com Joseph Stalin. O “Pai dos Povos” havia demonstrado pouca preocupação com seus “filhos” no continente africano.

Foi assim que a crise do Congo se tornou “o primeiro caso comprovado de intervenção da KGB nos assuntos de um país da África subsaariana”, observa Natalia Telepneva, especialista em história dos serviços de inteligência soviéticos na África da Universidade de Strathclyde, em Glasgow.

Essa interferência marcou o início da expansão da influência russa pelo continente africano.

“E, apesar da falta de interesse na região entre o início da década de 1990 e o final dos anos 2000, o Kremlin deixou sua marca. Para trazer a Rússia de volta à África, Vladimir Putin conseguiu tirar proveito da imagem relativamente boa da URSS no continente e de uma rede de contatos antigos”, explica Marcel Plichta, especialista em influência russa na África da Universidade de St Andrews.

A operação para resgatar o primeiro-ministro Patrice Lumumba, que parecia ser o parceiro ideal para a URSS, tinha poucos recursos na época. “Moscou só conseguiu enviar alguns agentes para o local”, explica Natalia Telepneva. Assim, o golpe de Estado de Joseph-Désiré Mobutu em 1960, apoiado ativamente pela agência americana CIA, foi um doloroso fracasso para a KGB.

Guerra Fria de baixo custo na África

Atrasados em relação aos americanos, os soviéticos precisavam avançar em suas estratégias de influência no território. Para isso, podiam contar com o entusiasmo dos agentes em uma nova empreitada.

“Para os primeiros agentes que se juntaram à divisão africana da KGB, o continente oferecia perspectivas interessantes de espionagem e os objetivos almejados – apoiar movimentos de libertação e, ao mesmo tempo, dissecar a atividade dos EUA no terreno – pareciam nobres”, escreve Natalia Telepneva em seu livro “Cold War Liberation” (ed. The University of North Carolina Press, 2022), baseado nas memórias de Vadim Kirpitchenko, que foi o primeiro diretor da seção africana da KGB.

A partir de 1960, a Rússia abriu mais e mais embaixadas em países africanos. Cada uma de suas delegações “incluía um agente da KGB e outro da GRU [inteligência militar]”, explica Natalia Telepneva.

A crise no Congo serviu de lição. “Moscou percebeu que a URSS não tinha os mesmos recursos que as potências ocidentais presentes na África. A inteligência e as operações clandestinas pareciam ser a melhor maneira de travar uma Guerra Fria de ‘baixo custo’ [sendo o investimento essencialmente humano]”, resume Natalia Telepneva.

Apesar de tudo, o fracasso russo no Congo teve um efeito benéfico para Moscou. A Rússia surgiu como aliada de um homem que se tornaria um mito para os movimentos de libertação no continente, Patrice Lumumba.

Os americanos, por outro lado, eram vistos como parceiros dos países coloniais. Essa imagem de uma União Soviética do “lado certo” da história na África foi reforçada pelo seu apoio – às vezes exagerado pela propaganda russa – ao ANC de Nelson Mandela contra o regime racista do Apartheid.

Os espiões russos fizeram o máximo possível para cultivar essa impressão. Esse foi o início de uma grande campanha, inclusive com o que hoje é chamado de operações de desinformação, para retratar a URSS como uma apoiadora desinteressada de uma África descolonizada, enquanto Washington seria retratada como o país que conspira para proteger seus interesses.

A KGB empregou todo o seu arsenal, manipulando a mídia local e fabricando documentos falsos para fazer da CIA o inimigo a ser destruído. Moscou alimentou a paranoia de Kwame Nkrumah, o primeiro líder de Gana independente, que se via como o “Lênin africano”. Ele acabou vendo espiões americanos em todos os lugares e chegou a escrever uma carta diretamente ao presidente dos EUA, Lyndon Johnson, acusando a CIA de mobilizar todos os seus recursos com o único objetivo de derrubá-lo.

Do sonho soviético à decepção

É difícil não ver nessa campanha o precursor das atividades de desinformação online das “fábricas de trolls” dirigidas por Yevgeny Prigozhin, o chefe do grupo mercenário Wagner.

Na África, a Rússia de Putin está usando uma versão 2.0 da narrativa soviética: na época, a URSS se apresentava como a campeã da descolonização, enquanto hoje “a Rússia afirma ser a aliada do pan-africanismo contra as antigas potências coloniais”, explica Marcel Plichta. A campanha russa para alimentar o sentimento antifrancês na República Centro-Africana (e no Mali) é apenas um exemplo.

Mas os esforços da KGB, que tanto inspiraram a Rússia de hoje, nem sempre foram bem-sucedidos. Pelo menos não tanto quanto esperava Moscou. A URSS “achava que esses países se alinhariam naturalmente à ideologia comunista e, portanto, ao bloco soviético. Mas isso acabou sendo mais complicado do que o esperado”, diz Natalia Telepneva.

O primeiro líder “amigo” da URSS na África subsaariana, Kwame Nkrumah, que esteve no comando de Gana por seis anos, foi derrubado em 1966 após sua tendência autoritária. Os outros dois países que se aliaram mais abertamente a Moscou – o Mali de Modibo Keïta e a Guiné de Ahmed Sékou Touré – não são lembrados como boas experiências comunistas. Keïta foi deposto do poder no Mali em 1968, após oito anos, enquanto Touré manteve um regime autoritário e brutal na Guiné por mais de 25 anos, até 1984.

Foi somente com a segunda onda de descolonização e a dissolução do antigo império português na África – Moçambique, Guiné-Bissau e Angola – na década de 1970 que as operações de influência soviética foram retomadas. Dessa vez, porém, o líder Leonid Brezhnev incentivou os serviços de inteligência “a redirecionar seus esforços para o fortalecimento da cooperação militar e de segurança com os exércitos de países ‘amigos'”, diz Natalia Telepneva. 

A URSS e o “soft power”

A URSS tornou-se um dos maiores fornecedores de armas para os países africanos. No inverno de 1977, por exemplo, a Etiópia, apoiada pela URSS contra a Somália, assistiu “um avião soviético cheio de equipamentos militares e instrutores aterrissar a cada 20 minutos”, de acordo com os arquivos de Mitrokhine, uma coleção de documentos da KGB.

Essa abordagem lembra as parcerias atuais e Vladimir Putin e do grupo Wagner no continente africano. Como aponta Marcel Plichta, “a principal estratégia de Moscou para estender sua influência na África, além de enviar os mercenários de Wagner, é aumentar o número de acordos de cooperação militar [21 assinados entre 2014 e 2019]”.

Durante a Guerra Fria, o apoio militar não se limitou ao fornecimento de armas. A URSS também treinou milhares de “combatentes da liberdade” em seu território. O Centro de Ensino-165 em Perevalnoe, na Crimeia, hoje uma península ucraniana anexada pela Rússia, tornou-se o exemplo mais famoso.

O manuseio de armas era uma das matérias ensinadas, mas havia muito mais: “Havia também treinamento político, com excursões a locais turísticos, visitas a fazendas coletivas e exibições de filmes. Os cursos também incluíam uma introdução ao leninismo-marxismo e discussões sobre a história da colonização”, explica Natalia Telepneva.

Moscou percebeu muito cedo o papel da educação para aprofundar seus laços com a África. Esse era o objetivo da Universidade Patrice Lumumba, inaugurada em Moscou por Khrushchev em 1961. Ao longo de 50 anos, ela treinou mais de 7.000 estudantes de 48 países africanos em diversas áreas, como física, economia e administração pública. E outros estudantes africanos também foram admitidos em várias instituições da URSS.

Para os espiões russos, o grupo de universitários africanos era um terreno fértil para possíveis recrutas. De fato, o vice-diretor da Universidade Lumumba pertencia à KGB.

Mas “isso não era o mais importante para Moscou”, diz Konstantinos Katsakioris, especialista em educação na África e na ex-URSS da Universidade de Bayreuth. O que importava era melhorar a imagem da URSS entre os africanos. Todos esses estudantes deveriam falar sobre as maravilhas soviéticas quando voltassem para casa.

E esse é ainda hoje um trunfo para Vladimir Putin. Após o colapso da URSS, Moscou, ocupada demais com seus problemas internos, deixou gradualmente a África. Mas todos os ex-alunos treinados na antiga URSS permaneceram.

Quando, em 2014, Vladimir Putin decidiu voltar ao continente africano em busca de novos aliados para compensar o isolamento diplomático causado por sua anexação da Crimeia, ele sabia que seus agentes poderiam encontrar amigos lá.

“Os militares e os estudantes eram jovens quando foram para a URSS. Hoje, alguns deles se tornaram membros influentes em seus países de origem”, ressalta Marcel Plichta. São milhares de ouvidos potencialmente receptivos às doces promessas dos homens de Putin e de Prigojiine.

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