Preço do ouro no mercado internacional disparou após guerra na Ucrânia e ataques do Hamas contra Israel. Esse cenário traz consigo impactos que vão muito além do setor financeiro.
(DW) Com o aumento das incertezas econômicas pela guerra entre Israel e Hamas, um velho conhecido voltou a aparecer como investimento seguro: o ouro. Justamente quando o metal vinha de uma queda nos preços, o conflito deu novo impulso às cotações, que subiram cerca de 10% desde os ataques de 7 de outubro. Os reflexos desta alta ultrapassam o setor financeiro e chegam até garimpos da América Latina.
Além das chamadas compras físicas, que vão de barras de ouro a joias, muitos investidores buscam os chamados ETFs, ou fundos de índices, que replicam as movimentações do metal no mercado internacional. A principal cotação nos mercados é a da chamada onça-troy na New York Mercantile Exchange (NYMEX), onde o ouro é negociado em dólares. Nos últimos dias, o metal vem rondando os 2.000 dólares (R$ 9.746) por onça-troy, um valor próximo de seu recorde histórico.
Até 2019, o ouro vinha sendo cotado próximo de 1.300 dólares. A chegada da pandemia, porém, impulsionou os preços. Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, o metal teve outro estímulo, em parte devido ao aumento da procura pela commodity por bancos centrais. Após as sanções contra Moscou, o ouro passou a ser visto como mais seguro por muitos governos, o que estimulou a demanda pelas autoridades monetárias, que, no primeiro semestre de 2023, foi a maior já registrada.
“A compra pelos bancos centrais é um elemento que tem apoiado os preços do ouro. Vemos isso principalmente como uma declaração política a Washington, sinalizando desconforto com a política internacional dos EUA”, afirma Carsten Menke, líder de pesquisa do banco Julius Baer.
“O gatilho mais importante foi o congelamento dos ativos russos, levando os países que não estão alinhados com o Ocidente a diversificar algumas das suas reservas monetárias em ouro”, afirma o analista. China e Turquia estão entre os grandes compradores recentes, por exemplo. “Esperamos que as aquisições de ouro pelos bancos centrais permaneçam fortes no futuro próximo, apoiando os preços”, projeta.
Já o aumento do preço do ouro desde os ataques do Hamas foi, acima de tudo, impulsionado por uma mudança de humor entre os comerciantes especulativos, avalia Menke. Em sua visão, o aumento nos preços do metal, maior do que em conflitos anteriores, ocorre também por um pessimismo geral com a economia global antes dos ataques.
Para Carsten Fritsch, analista de commodities do Commerzbank, é “evidente que o ouro está lucrando com o seu papel de porto seguro em tempos de maior incerteza e aversão ao risco”.
Estímulo ao garimpo
A relação entre a alta nos preços do metal e o avanço do garimpo na América Latina já foi citada por um relatório da Interpol, em 2022. “Há uma relação direta entre o aumento do ouro nos mercados globais e o preço dos mercados locais, ainda que de maneira ilegal”, reforça Daniel Bonilla Calle, professor de negócios internacionais da Fundação Universitário CEIPA, acrescentando que os preços da mineração ilegal se comportam e têm o mesmo movimento da exploração legal.
“Quando há picos internacionais, se produz o que se chama de bonanças de ouro nos mercados locais. Isso atrai mineradores ilegais e grupos armados, além de outros atores que queiram entrar na atividade”, resume Bonilla.
O especialista destaca que um dos motivos que movimenta o mercado ilegal é o valor entre 20% e 30% mais barato do ouro desta origem. No Brasil, estimativas são de que cerca de metade do metal exportado pelo país tenha origem ilegal. Na Colômbia, os cálculos são de que 80% dos envios de ouro ao exterior não tenham origem legal.
“Há uma cadeia complexa, e muitas vezes os compradores finais não têm uma visão de 100% de onde o material veio”, afirma Livia Wagner, chefe de governança da Global Initiative, organização civil que estuda o crime organizado internacional. De acordo com a especialista, o metal no exterior é buscado não apenas na joalheria, mas também para a produção de equipamentos eletrônicos.
Atração para o crime organizado
Um consenso entre especialistas é o de que a maior lucratividade do garimpo atraiu o crime organizado para a atividade, especialmente na Amazônia. Os criminosos buscam, principalmente, lavar dinheiro com a mineração ilegal, e o avanço da violência é um resultado.
“A valorização expressiva do ouro nos últimos anos teve um impacto significativo nas áreas de garimpo na Amazônia. Entre as diversas consequências, a alta resultou em um aumento nos investimentos em maquinários, como balsas e escavadeiras hidráulicas”, afirma Bruno Manzollli, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que monitora o tema. Ele aponta que tais equipamentos, que podem custar mais de R$ 1 milhão, aceleram o processo de desmatamento e de retirada do material do solo.
“Assim, novas frentes de lavra são abertas com maior rapidez, a partir de práticas predatórias, sem controle ambiental. Outro fator relevante é que a partir do momento que o preço do ouro sobe, depósitos que até então não apresentavam viabilidade econômica passam a ser explorados”, afirma Manzolli. Além do desmatamento, o uso do mercúrio é outro problema observado.
Em alguns casos, a atração da atividade fez com que criminosos deixassem de lado outros negócios. Segundo Bonilla, o ouro compete com o cultivo da coca, base para a cocaína, e, em algumas regiões, os mesmos grupos podem comandar ambas as atividades. Assim, pessoas migram de um mercado para outro que “paga melhor”, afirma. Com uma baixa nos preços internacionais da coca, há registros na Colômbia de cultivos abandonados e sem mão de obra.
Melhor fonte de renda e soluções
“Comunidades empobrecidas veem o garimpo como uma oportunidade mais fácil para gerar renda”, afirma Wagner. Segundo Manzollli, mesmo sendo abordados pela fiscalização, seja ela ambiental ou trabalhista, é comum o garimpeiro desejar voltar para a atividade, devido à falta de oportunidades na cidade ou à melhor remuneração em comparação ao salário recebido em alguns empregos na área urbana.
Para ele, no Brasil, a legislação deve ser atualizada para a nova realidade do garimpo, exigindo planos que contemplem desde a fase anterior à exploração até o fechamento das minas e plano de recuperação da área. “E os garimpeiros não podem ser deixados de lado, é preciso um plano de capacitação para que essas pessoas encontrem oportunidades em outras atividades econômicas, a fim de reduzir a dependência do garimpo”, afirma.
Duas mudanças recentes endureceram as regras para o garimpo. Em junho, o plenário do Supremo Tribunal Federal suspendeu uma norma que presumia a legalidade do ouro adquirido e a boa-fé da empresa que comprava o metal. No mesmo mês, o governo enviou ao Congresso propondo um novo marco legal para o mercado de ouro no país. Em julho, entrou em vigor uma instrução normativa da Receita que passou a exigir a emissão de nota fiscal eletrônica para negócios que envolvam ouro como ativo financeiro ou como instrumento cambial.
Outro meio que pode ser buscado é a ampliação da certificação de legalidade internacional do ouro. Segundo Wagner, há casos de sucesso da medida, incluindo a Colômbia. “É importante buscar fazer isso em menor escala, não somente nos comerciantes finais. É necessário que todos os passos da cadeia de fornecimento sejam verificados”, afirma.