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Cinco mitos sobre um ditador

Richard Downie, The Washington Post*

Como cantava Frank Sinatra em My Way, Muamar Kadafi também sempre fez as coisas do seu jeito. Quando os protestos públicos, ao estilo de Egito e Tunísia, não conseguiram desalojar o líder líbio, eclodiu uma rebelião em escala total que se chocou contra a brutalidade implacável tão familiar aos velhos observadores de Kadafi. A situação da Líbia, que viviam um impasse entre governistas e rebeldes, parece ter se definido em favor do ditador. No momento em que a comunidade internacional aprovava medidas punitivas no Conselho de Segurança da ONU e se perguntava quando e como Kadafi poderá cair, trataremos de derrubar alguns equívocos sobre o caprichoso líder.

1) Kadafi é louco. Dado: Kadafi parece um ditador demente. Ataques homicidas contra seu próprio povo? Confere. Ideologia maluca? Tente ler as digressões incoerentes do seu Livro Verde, seu manifesto dos anos 70. Declarações públicas bizarras? Ouça sua arenga de 90 minutos contra o mundo diante da Assembleia Geral da ONU, em 2009. Acrescente à mistura sua força de segurança só de mulheres, a Guarda Amazônica, e a tenda beduína que ele monta durante suas viagens. As evidências sugerem uma pessoa maluca.

No entanto, Kadafi não conseguiria se manter no poder por tanto tempo num país tão dividido como a Líbia se não fosse um operador político astuto. Ele se adaptou ao longo dos anos, ajustando sua mensagem para agradar eleitorados diferentes com pan-arabismo, pan-africanismo, antiocidentalismo e uma tentativa idiossincrática de socialismo. Ele usou todos os meios a sua disposição para alcançar seu único objetivo: permanecer no poder.

A riqueza do petróleo da Líbia capacita Kadafi a comprar lealdades. Quando a lealdade não pode ser comprada, ele usa a intimidação e a violência para extraí-la – por exemplo, na repressão brutal dos estudantes islâmicos no leste da Líbia nos anos 90. Ele removeu metodicamente seus inimigos, mantendo os militares fracos, as tribos divididas e os radicais islâmicos temendo pelas próprias vidas. Ele manteve seus inimigos se digladiando em vez de trabalharem juntos para derrubá-lo. Ele chegou a manipular seus próprios filhos, atiçando suas rivalidades, para impedir que um deles se tornasse poderoso demais.

Até o mês passado, Kadafi conseguiu controlar tudo e todos em seu país, enquanto alegava não ter nenhum cargo oficial. O argumento é maluco, mas o homem que o diz tem sido bem-sucedido demais para ser subestimado e considerado um louco.

2) Kadafi lutará até a morte. Depois que o presidente Ronald Reagan chamou Kadafi de "cachorro louco do Oriente Médio", muitos acharam que o ditador morreria antes de deixar o poder. Embora não se deva esperar uma rendição fácil do homem que prometeu enfrentar a rebelião líbia "até a última gota de sangue", o passado de Kadafi sugere que ele é capaz de recuar do precipício.

Após os EUA invadirem o Iraque, em 2003, Kadafi temeu que seu regime pudesse ser o próximo. Ele desistiu então de seu programa de armas nucleares e pagou indenização às famílias das vítimas do atentado em Lockerbie em troca de um fim das sanções comerciais americanas. Se lhe deram terreno antes, por que não agora? Reportagens na mídia árabe sugerem que ele não descartou a possibilidade de deixar o poder em troca de imunidade a perseguições e asilo no exterior para ele e sua família. Uma aposentadoria pacata em Caracas ou Harare não deve ser descartada se os rebeldes ganharem terreno.

3) Mercenários estrangeiros mantêm Kadafi no poder. A coisa não é tão simples e direta. Combatentes dos vizinhos Chade, Níger e também de Síria, Sérvia e Ucrânia acorreram para Kadafi em sua hora de necessidade, mas o apoio central do líder líbio vem de clientelas domésticas, que incluem unidades de forças especiais comandadas por seus filhos, uma segurança interna formidável e a fidelidade de seu próprio grupo tribal, Gaddadfa. Muitos "estrangeiros" da Líbia já vivem há anos no país. Eles vieram do Chade, Mali e Níger ainda nos anos 70 para ingressar na Legião Islâmica de Kadafi.

4) Uma zona de exclusão aérea acabará com Kadafi. É muito improvável. Aliás, o secretário de Defesa dos EUA, Robert Gates, e vários generais de peso vacilaram ante o custo e os riscos de destruir as defesas aéreas líbias. De qualquer maneira, os ataques mais significativos do regime contra os rebeldes não têm sido conduzidos por aviões, mas por forças terrestres e helicópteros capazes de se esquivar de uma zona de exclusão aérea. Há também uma realidade diplomática incômoda: não seria fácil uma intervenção obter respaldo na Otan, onde a Turquia é contrária – embora tenha sido aprovada na ONU.

E, mesmo que uma zona de exclusão aérea pudesse derrubar Kadafi, por que o presidente dos EUA, Barack Obama, desejaria estabelecer uma? Os EUA estão cautelosos, temendo uma nova intervenção confusa em um país muçulmano. A menos que Kadafi comece a usar aviões para causar uma matança em massa, uma zona de exclusão aérea pode, quando muito, aplainar o campo de jogo para que os dois lados da guerra civil na Líbia possam lutar de maneira mais igual – e não é Kadafi que está por baixo nessa batalha.

5) Remova Kadafi e os problemas da Líbia serão resolvidos. O regime de Kadafi teve um benefício: manteve unido um país dividido. Sua saída deixará um vácuo de poder. Kadafi fez um serviço tão completo para eliminar sua oposição que não há nada para substituí-lo. Os rebeldes são unidos por pouco mais que seu ódio ao ditador.

Secularistas, monarquistas e até ex-jihadistas batalham ombro a ombro nessa luta. As lealdades tribais complicam ainda mais os esforços para forjar uma frente comum. Todas as facções pedem uma ação internacional para destituir Kadafi, mas estão divididas sobre a forma que essa ação deve tomar.

Só depois que o Conselho Nacional Interino foi estabelecido na cidade de Benghazi tomada pelos rebeldes, em 26 de fevereiro, a oposição a Kadafi começou a se aglutinar. No entanto, isto foi no começo. Durante quase uma semana, o ex-ministro da Justiça Mustafa Abdel-Jalil disputou a liderança do conselho com o advogado Abdel-Hafidh Ghoga.

Jalil só foi confirmado no comando no dia 5. Mesmo se os rebeldes da Líbia conseguirem alcançar a vitória no campo de batalha, a tarefa de construir um movimento nacional numa sociedade dividida serão ainda mais difíceis.

TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNICK

* É Vice-Diretor do programa África do Center for Strategic and International Studies, De Washington

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