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Cansado de ser líder

RUBENS RICUPERO

O IMINENTE FRACASSO da Rodada Doha da OMC (Organização Mundial do Comércio), depois de dez anos de laboriosas negociações, é sintomático de tendência inquietante. Não existe mais uma potência hegemônica capaz de fazer as coisas acontecerem.

Durante mais de 60 anos, esse papel coube aos EUA, responsáveis pela ordem política e econômica construída sobre as ruínas da Segunda Guerra Mundial.

Essa ordem de inspiração liberal refletia a visão e os interesses americanos, mas gozava da crescente aceitação consensual da maioria dos outros países. Assentava-se nas grandes organizações internacionais criadas para administrar a ordem: as Nações Unidas, o FMI, o Banco Mundial, a OMC e seu antecessor, o Gatt.

Nasceram da evolução da consciência humana nas sociedades americana e europeia as principais ideias-força que ganharam forma nos tratados e programas promovidos por tais entidades: os direitos humanos, a democracia, o ambiente, a igualdade entre mulheres e homens, o desenvolvimento econômico, o Estado de bem-estar social, a economia de mercado, a liberalização econômica e comercial.

De algum tempo para cá, notavam-se certo esgotamento e perda de fôlego no avanço desses temas. A persistente crise do Conselho de Direitos Humanos da ONU, a falta de consenso para a reforma do Conselho de Segurança, a constante frustração em atingir as metas para o combate ao aquecimento global são alguns desses indícios da paralisia do impulso criador nas questões mundiais.

Até agora, porém, nunca se havia assistido ao que ameaça ocorrer na OMC: uma década de esforços jogados fora. Preocupados com o desgaste cumulativo de adiamentos em série, alguns propõem que se fixe data definitiva e inadiável para concluir a rodada com êxito ou para declará-la um fracasso.

Há muitas razões para o impasse nas negociações, mas a primeira delas é que lhes falta o fator decisivo em todas as oito rodadas anteriores: a liderança insistente e flexível dos americanos.

Desta vez, enfraquecidos pela interminável crise econômica e pelas dificuldades de se libertar de guerras impopulares no Iraque e no Afeganistão, desmoralizados pela estridência selvagem das divisões domésticas, os EUA revelam apetite cada vez menor para a liderança. Suas propostas irrealistas para a conclusão de Doha parecem mais manobras para transferir a outros a culpa pelo fiasco do que intentos sérios de edificar consenso.

O problema é que ninguém se dispõe a ocupar o vazio criado pela retração de Washington, a começar pela China que, fora dos negócios de seu direto interesse, demonstra inapetência ainda maior que a americana pelos assuntos globais.

Não era diferente a atitude do Japão na época em que parecia destinado a rivalizar com os EUA. O que impõe pergunta perturbadora, ainda que a deriva do eixo do mundo em direção à Ásia demore décadas: como seria uma ordem internacional pós-ocidental?

A não ser quando é imposta pela força, a hegemonia tem de ser cultural e moral, cimentada por ideais e valores partilhados por culturas e países diversos. Sabemos quais são os valores e ideais universais do Ocidente. Quem é capaz de dizer quais seriam os da China?

 

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