Cúpula em Joanesburgo discutirá adesão de novos membros ao bloco e criação de alternativas ao dólar. Decisões sinalizarão o futuro do grupo, a força da China e o papel do Brasil.
É alta a chance de o Brics ganhar novas letras. A inclusão de mais países no grupo, que hoje reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, é um dos principais temas da cúpula que ocorre nesta terça a quinta-feira (22 e 24/08), em Joanesburgo.
Outro assunto central será a criação de alternativas ao dólar para transações internacionais, como o uso de moedas dos próprios países no comércio bilateral ou a criação de uma unidade de referência monetária do Brics.
Os dois tópicos são de complexa execução e não têm unanimidade entre os membros. A depender de como forem encaminhados, darão os contornos do futuro do bloco, originalmente criado para fortalecer uma ordem multipolar e pressionar pela reforma da governança global.
O que está em jogo
Desde 2009, quando o grupo realizou sua primeira cúpula, a polarização entre Estados Unidos e China e a invasão da Ucrânia pela Rússia redesenharam a geopolítica mundial, e o Brics – hoje em fase de revigoramento – faz parte desse cenário.
Os governos autoritários de Pequim e Moscou vêm promovendo uma contestação aberta ao Ocidente e desejam mobilizar o Brics nessa empreitada. Já Brasil, Índia e África do Sul – três democracias, ainda que imperfeitas – têm interesse em manter boas relações com os dois lados dessa nova Guerra Fria.
Além da expansão do Brics e da desdolarização das transações, o encontro deverá discutir a repercussão da guerra na Ucrânia na segurança alimentar, que afeta de forma particularmente intensa os países da África, onde a cúpula se realiza neste ano.
O encontro será marcado pela ausência do presidente russo, Vladimir Putin. Ele é alvo de um mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional, e como a África do Sul é um dos países-membros da corte, em tese seria obrigada a prendê-lo. Moscou será representada pelo seu ministro das Relações Exteriores, Serguei Lavrov.
Entre os membros do Brics, o Brasil só não é menos influente do que a África do Sul, tendo em vista população, economia e poder militar. Mas tem peso especialmente nos debates sobre meio ambiente e comércio internacional.
Critérios para expansão
Nascido como Bric, o grupo só foi incorporar o S da África do Sul mais tarde, em 2010. Hoje há pelos menos mais 20 países que desejam aderir, incluindo Argentina, Egito, Indonésia, Irã, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Venezuela.
A China e a Rússia têm interesse em ampliar o Brics para transformá-lo em uma alternativa para fazer frente ao G7, o grupo das sete democracias liberais mais industrializadas do mundo.
África do Sul, Brasil e Índia não eram tão entusiastas da expansão, mas vêm indicando que podem aceitá-la mediante a negociação dos critérios e de quais países serão aceitos.
Está em debate, por exemplo, se os novos integrantes seriam membros plenos, ou se seria criada uma nova categoria de países associados.
Reformista ou anti-Ocidente
Vinicius Guilherme Rodrigues Vieira, professor de relações internacionais da FAAP e da FGV, afirma à DW que o objetivo da China é usar o Brics para trazer para sua órbita países mais alinhados a regimes autoritários “para fazer avançar suas ambições de fustigar o Ocidente” e diluir o poder dos outros atuais membros do bloco.
Seria especialmente vantajoso para Pequim e Moscou a inclusão de países autocráticos, como ditaduras do Oriente Médio, diz.
O Itamaraty vinha se opondo à ampliação para não perder poder de influência. Recentemente, no entanto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu a entrada de Argentina, Emirados Árabes e Arábia Saudita. As decisões são tomadas por consenso, mas o poder da China é grande para persuadir os demais.
Vieira avalia que caberá ao Brasil atuar para influenciar o perfil dos novos membros, e que não seria do interesse do país que o bloco siga um caminho de “antiocidentalismo explícito”.
Felipe Krause, professor de estudos latino-americanos da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, sintetiza três posições possíveis nesse cenário.
A contestadora, promovida por China e Rússia com o objetivo de “derrubar” a atual ordem mundial. A cética, que reconhece os problemas dessa ordem mas prioriza a necessidade de o Brasil diversificar suas relações e defende “ficar em cima do muro”. E a reformista, mais pró-Ocidente e que prefere dedicar-se ao aperfeiçoamento da atual governança global.
Ele avalia que o discurso do atual governo Lula em política externa estaria hoje mais próximo da visão contestadora, o que poderia apresentar riscos ao Brasil.
“Não temos o poder econômico e político para ter um discurso mais contundente contra o Ocidente. Faríamos melhor tentando ficar mais do lado da ordem liberal internacional e reformando seus desequilíbrios”, diz.
Alternativa ao dólar
O dólar é a principal moeda para uso em transações internacionais e para reserva de valor desde o fim da Segunda Guerra Mundial, substituindo em grande medida o ouro. Isso conferiu vantagens econômicas aos Estados Unidos e deu poder para Washington usar seu controle sobre a moeda para aplicar sanções internacionais, como vem sendo feito contra a Rússia.
Líderes de diversos países vêm defendendo a criação de uma alternativa ao dólar, que também é uma das bandeiras de Lula na sua política internacional desde que assumiu o Palácio do Planalto em janeiro.
Isso já vem sendo testado em relações bilaterais. Em abril, durante a visita de Lula a Pequim, Brasil e China assinaram um memorando de entendimento para fortalecer seu comércio em moedas locais, sem a necessidade de uso do dólar.
Aplicar a ideia no âmbito do Brics seria mais complicado. A declaração final da cúpula em Joanesburgo deve trazer alguma novidade a respeito, como a criação de um grupo de trabalho para elaborar uma proposta.
Trata-se de uma ideia vista com entusiasmo pela Rússia, que enfrenta restrições para o uso do dólar, e pela China, que discute usar sua moeda digital centralizada em transações internacionais.
Uma possibilidade seria criar uma nova unidade de referência monetária ou uma moeda para uso exclusivo nas trocas entre os países do Brics ou os do Banco do Brics (NDB), que abrange também Bangladesh, Egito e Emirados Árabes Unidos.
A criação dessa nova moeda é vista com ceticismo por alguns – inclusive pelo ex-economista do banco Goldman Sachs que cunhou o termo Brics, Jim O’Neill, que a classificou como “inviável”.
Mesmo se for criada, haveria um novo problema, diz Krause – a tendência seria a China ser o ator com mais influência sobre essa moeda. “O problema da dolarização é que você fica exposto às decisões do Fed para todo tipo de transação internacional. Mas se você fizer uma moeda comum do Brics você estará meio que transferindo a força do dólar para a força do yuan [a moeda da China, também chamada de reminbi].”
Ele aponta para outras alternativas mais viáveis, como os países do Brics fortalecerem as transações bilaterais entre eles nas moedas locais, ou o NDB realizar empréstimos nas moedas locais.
O equilíbrio do Brasil
Vieira não espera grandes decisões da cúpula, mas um comunicado final que apóie o uso de moedas locais nas transações comerciais.
Da parte do Brasil, ele avalia que o país tem força em questões ambientais e deve tentar usar o Brics para “apontar o dedo para o Norte Global fazer as devidas compensações” no combate ao aquecimento global.
Ele também acredita que o país se empenhará “ao máximo” para que o Brics não assuma uma posição claramente anti-Ocidente, “não por benevolência ao Ocidente, mas em função de seus interesses”.
“No curto prazo, a visão do PT em diplomacia tem traços fortes de antiocidentalismo. O que salva a diplomacia do Brasil são os interesses de longo prazo, além da visão não do PT, mas do presidente Lula como ex-líder sindical que quer falar com todos”, diz.
Por outro lado, ele afirma que a própria China tem limitações para levar adiante sua agenda para o Brics, pois sabe que precisa de aliados no Sul Global e não deseja afastá-los. Mas, se Pequim insistir e conquistar seu objetivo, caberia ao Brasil fortalecer sua diplomacia autônoma para resguardar seus interesses e pressionar por reformas na governança global, diz.