- Marcia Carmo
A poucas horas da votação no Senado de um projeto de lei que modifica as regras atuais para produção, comercialização e distribuição de papel jornal na Argentina, aumenta a tensão entre o governo e setores da imprensa.
Cerca de 50 soldados ocuparam nesta terça-feira um edifício da empresa de TV a cabo Cablevisión, do Grupo Clarin. Trata-se de mais um episódio controverso envolvendo o maior jornal do país, acusado por militantes governistas de conspirar contra o governo durante a crise no campo, em 2008. Os soldados da Gendarmería Nacional, polícia especializada em fronteiras e alguns crimes federais, permaneceram três horas no edifício, em Buenos Aires, obedecendo a uma ordem judicial da Província de Mendoza.
Oficialmente, a Justiça teria atendido pedido de outro grupo empresarial, o Vila Manzano. O conglomerado, de propriedade de aliados do governo Kirchner, segundo o Clarín, é contra a fusão da Cablevisión com outra companhia do ramo, a Multicanal.
A presença dos soldados, com uniforme verde oliva como os do Exército, surpreendeu os trabalhadores da empresa que foram retirados do local durante a operação. Segundo emissoras de rádio, os soldados chegaram ao edifício da Cablevisión acompanhados por repórteres de veículos considerados "simpáticos" ao governo.
O grupo Clarín divulgou um comunicado dizendo que a Cablevisión não possui negócios em Mendoza e que a operação faz parte da "campanha ostensiva" do governo contra a companhia. De acordo com a imprensa local, a ordem judicial era para que documentos da empresa fossem revisados.
Recentemente, a Secretaria de Comunicação do governo emitiu uma norma anulando a fusão da Cablevisión e da Multicanal. Na pratica, a fusão continua em vigor, de acordo com o jornal La Nación.
A ocupação da Cablevisión marca mais um capítulo polêmico do Clarín. Em ocasiões, anteriores sindicalistas ligados ao governo chegaram a bloquear a distribuição do jornal e também hastearam anúncios com a mensagem: "Clarín mente".
"Papel como bem público"
A operação policial ocorreu em meio a expectativas para a votação, nesta quarta ou quinta-feira, do projeto de lei que muda as regras para a empresa Papel Prensa – na qual Clarín e La Nación juntos têm maioria acionária e o governo minoria. O texto, que declara o papel como "bem público", foi aprovado pela Câmara dos Deputados, na semana passada, e aguarda o aval dos senadores.
Nos últimos dias, os dois maiores jornais argentinos publicaram amplos anúncios contra a medida, dizendo: "O Papel da Censura". Entrevistados pela BBC Brasil, o presidente do jornal La Nación, Julio Saguier, e o deputado Edgardo di Petri, da governista Frente para a Vitória, justificaram por que são contra e a favor do projeto do governo da presidente Cristina Kirchner.
Para Saguier, a medida do governo afeta a liberdade de expressão. "O papel é um insumo básico para os jornais. Hoje situação parecida já existe com a publicidade oficial que o governo entrega aos meios simpáticos às suas medidas. É um sistema de prêmios e castigos que busca impor o discurso oficial único", afirmou.
Segundo Saguier, se a medida for aprovada, como é esperado, o La Nación vai apelar aos foros internacionais para tentar "reverter este atropelo à liberdade de imprensa e a propriedade privada". Ele afirmou que jamais se opuseram a instalação de outras empresas de papel jornal no país.
"Somos contra sim a que o governo pretenda concretizar o aumento de capital que modificará a sua participação acionaria e significa uma confiscação disfarçada (da Papel Prensa)".
"Liberdade de empresa"
Atualmente não existem barreiras tarifárias para a importação do papel e a empresa Papel Prensa distribui papel jornal para cerca de 170 jornais no país. O governo argumenta que pretende acabar com o "monopólio" do papel jornal na Argentina, como afirmou Di Petri, um dos principais defensores da medida do governo.
"Queremos garantir a produção nacional do papel e evitar praticas de monopólios. A empresa Papel Prensa pertence ao principal grupo de comunicação da Argentina e é a única produtora deste papel no país. Queremos regular para beneficiar os jornais do interior", disse o parlamentar.
O texto prevê que o Ministério da Economia lidere uma comissão com deputados, senadores, sindicalistas e donos de jornais para definir como será feita a produção, comercialização e distribuição do insumo a partir da nova lei.
O projeto faz parte do pacote de medidas lançadas há mais de dois anos que inclui a chamada "lei de medios", que regula a composição acionária de rádios e televisões do país. O Grupo Clarín foi um dos mais afetados pela nova legislação.
Segundo Di Petri, após aprovação da lei, a empresa Papel Prensa deverá ter sua distribuição reformulada. "Hoje, a composição acionária é feita com maioria do Clarín e do La Nación que definem preço do papel e sua distribuição. Com a nova lei, será aberto espaço para novos atores (na empresa Papel Prensa)", disse. Quando perguntado se o projeto de lei afeta a liberdade de expressão, o parlamentar respondeu: "Afeta a liberdade de empresa e não de imprensa".