Luis Kawaguti*
Desembarcar nesta semana em Goma, a principal cidade do leste da RDC (República Democrática do Congo), provocou em mim uma sensação muito parecida à de pisar em Porto Príncipe pela primeira vez em meados de 2005, durante os combates entre militares da ONU e rebeldes na capital haitiana.
As casas cinza de blocos de concreto sem acabamento, os barracos de zinco, a comida exposta ao ar livre nos mercados de rua e o letreiros das pequenas vendas e bares – todos escritos em francês (o Haiti foi colonizado por franceses e a RDC, por belgas) – tornam difícil, à primeira vista, diferenciar o país africano da nação caribenha.
Os dois países têm sérios problemas e abrigam missões de paz da ONU com a participação de brasileiros. É comum ver em ambos os veículos brancos da organização circulando pela rua.
Mas aos poucos as diferenças entre os dois países começam a surgir: no Haiti, os combates entre a ONU e os grupos armados ocorriam no coração da capital. Em Goma, estão ocorrendo nos arredores da cidade, que está cercada e protegida por uma espécie de cinturão de tropas internacionais.
'Brigada de intervenção'
Militares brasileiros vêm liderando a missão no Haiti desde 2004. Mas, desde maio, o homem que comanda os militares da ONU na RDC também é da mesma nacionalidade. Trata-se do general Carlos Alberto dos Santos Cruz.
Ele foi escolhido para o cargo pelo Conselho de Segurança pela fama e experiência adquiridas após liderar por mais de dois anos a Minustah, a missão de paz do Haiti. Atuou principalmente durante o processo de pacificação da favela de Cité Soleil – um dos últimos bastiões rebeldes no país, que caiu em 2007.
O convite a Santos Cruz ocorreu em um momento em que a missão na RDC estava em um processo de reformulação – depois que um grupo rebelde congolês conhecido como M23 invadiu e se retirou logo em seguida de Goma, em novembro de 2012. Os rebeldes não sofreram praticamente nenhuma resistência da ONU durante o episódio.
O fracasso fez o Conselho de Segurança da ONU repensar a operação e abrir um precedente na história das missões de paz, com a criação formal de uma "brigada de intervenção". A unidade tem poderes para perseguir e atacar os grupos rebeldes do leste da RDC – mesmo em caráter preventivo, sem vinculação necessária a alguma agressão específica, como ocorre nas missões de paz tradicionais.
No pouco tempo em que está na RDC, Santos Cruz já identificou dificuldades que não estavam presentes do cenário haitiano. A primeira delas é o fato do país ter mais de 27 mil quilômetros quadrados (contra 2,3 mil do Haiti) – grande parte deles cobertos por selva e sem estradas.
A extensão territorial dificulta o posicionamento dos cerca de 20 mil militares que compõe a força internacional e exige o estabelecimento de uma estrutura complexa de transportes. Para se ter ideia, a capital, Kinshasa, onde ficam as sedes da ONU e do governo no oeste do país, está a 1,5 mil quilômetros de Goma, um dos principais focos de conflitos.
Já no Haiti, a maioria dos combates se concentrou somente na capital, onde gangues e rebeldes controlavam favelas da região central. O deslocamento de recursos da ONU de uma área para outra podia ser feito em minutos.
Rebeldes
Antes da pacificação, o Haiti possuía como grupos hostis à ONU uma milícia formada por ex-militares do Exército extinto, um grupo armado ligado ao partido político Fanmi Lavalas, do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, e uma rede de gangues que atuava na capital Porto Príncipe. Não havia, porém, qualquer fator étnico para motivar as hostilidades.
Segundo Santos Cruz, a RDC tem hoje mais de 50 diferentes grupos armados ativos, formados por contingentes que variam entre 100 e 2 mil integrantes.
A maioria atua no leste do país e é responsável por uma série de abusos de direitos humanos, como o emprego de crianças em milícias, o uso do estupro como arma de guerra, além de mutilações e assassinatos contra a população civil.
Algumas dessas milícias lutam por motivos étnicos e chegaram a ser financiadas por países vizinhos, como Ruanda e Uganda.
Um dos grupos mais famosos e numeroso é o M23 – formado por ex-militares. “É um grupo que tem formação militar. Eles desertaram do Exército levando armamento pesado e mantêm a mesma hierarquia militar. Mas também recrutam pessoas sem formação militar, a maioria menores de idade, as crianças-soldado”, diz o general à BBC Brasil.
Também estão presentes a Forças Democráticas para a Libertação de Ruanda, de formação étnica hutu, e o Exército da Resistência do Senhor.
Além deles, atuam no país dezenas de grupos conhecidos como Mai-Mai. Eles são milícias tribais armadas pelo governo no passado para se defender contra forças externas. Hoje esses grupos lutam entre si e contra o M23 e a ONU.
Deficiências do Estado
De acordo com Santos Cruz, a principal dificuldade na RDC é, no entanto, a ausência do poder do Estado em áreas remotas do país, algo que ocorre também no Haiti.
A falta de governança cria um vácuo de poder, que acaba sendo ocupado pelas milícias, orientadas por seus próprios interesses.
Além de tentar explorar os recursos minerais do país à revelia do governo e cometer abusos e crimes contra a população, esses grupos se entrelaçam em uma rede de interesses e alianças que desestabilizam todo o leste do país e a região dos Grandes Lagos.
Está agora nas mãos da ONU o desafio de desestruturar essa rede pela negociação e talvez com ajuda do uso da força.
*O repórter da BBC Brasil Luis Kawaguti esteve no Haiti sete vezes entre 2005 e 2010.