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Afeganistão – A má interpretação de duas guerras distintas

Stephen Blank

Faz algum tempo que muitos escritores russos e estrangeiros resolveram dizer que os Estados Unidos estão repetindo os mesmos erros cometidos pela Rússia no Afeganistão. Embora nenhum deles tenha sido capaz de sustentar tal comparação, esse não é o fato mais importante em qualquer análise comparativa sobre as duas guerras no referido país. Em um diagnóstico mais detalhado, esse argumento é uma leitura fácil e superficial, geralmente inspirada pelo prazer em rir das dificuldades norte-americanas ou uma tentativa de promover uma justificativa tardia ou operação de resgate da guerra da União Soviética no Afeganistão. As analogias entre as duas guerras pertencem a fenômenos menores, enquanto as diferenças são claramente visíveis nos mais importantes níveis estratégicos e operacionais. 

Em primeiro lugar, a guerra de Moscou foi uma invasão soviética sem justificativa a um país dilacerado pela guerra civil, para salvar um grupo de fanáticos e oportunistas que pensaram ser capazes de transformar o Afeganistão em um Estado socialista. Moscou, em seguida, agravou o erro, ao cair no truque do mesmo argumento. Consequentemente, a invasão soviética do Afeganistão não só causou alarde na sociedade e suscitou críticas por todo o mundo, como incentivou o nascimento de uma aliança internacional contra Moscou que muito contribuiu para dar um fim definitivo à invasão. A guerra dos EUA (agora liderada pela Otan) é bem diferente. Foi e continua sendo uma resposta defensiva aos ataques de 11 de setembro promovidos pela Al-Qaeda e à determinação do Talibã de proteger essa organização. Desse modo, enquanto a invasão soviética nunca teve legitimidade internacional e estimulou um forte movimento contra si, é exatamente a situação oposta que caracteriza a guerra dos EUA e da Otan. Essa guerra, apesar do interminável combate, nunca teve sua validade questionada e deu origem a uma aliança internacional contra o Talibã. 

Em segundo lugar, as forças soviéticas não só apoiaram a campanha nacional no Afeganistão para construir o socialismo, mas alienaram a população, devastaram o país e forçaram milhares de afegãos instruídos a sair do país, tornando-os refugiados no exterior. No caso da guerra norte-americana, ocorreu exatamente o contrário. Os refugiados retornaram ao país, levando consigo suas aptidões e capital pessoal. Além disso, apesar da guerra, o comércio do Afeganistão com seus vizinhos está crescendo, governos estrangeiros como a China estão investindo na região, e o número de meninas e meninas nas escolas também está aumentando. Estradas estão sendo construídas, e infraestrutura, desenvolvida. Mesmo com todas as dificuldades e carências que continuam a assolar o país como resultado da guerra, tais indicadores não atestam um fracasso total e podem ser positivamente comparados à destruição causada pela ocupação soviética entre 1979 e 1989.

Em terceiro lugar, as forças soviéticas foram derrotadas e tiveram que vergonhosamente deixar o país. Elas não foram capazes de conter a resistência nem qualquer um de seus líderes e integrantes. Na campanha dos Estados Unidos e da Otan, as forças aliadas tornaram a Al-Qaeda vulnerável mesmo antes de Osama Bin Laden ser morto em maio de 2011. A liderança do Talibã também foi desmantelada, com muitos de seus dirigentes mortos. Ainda que o Talibã triunfe quando as forças norte-americanas e aliadas deixarem a região depois de 2014, está absolutamente claro que a rede terrorista não chegará nem perto de ser tão eficaz quanto era uma década atrás. E não existe certeza alguma de que o Talibã pode ou irá retomar o controle em 2014.

Tais afirmações não estão fundamentadas por análises nem apoiadas em evidências; tratam-se apenas de especulação ou pensamento positivo. Na verdade, a alegação de uma possível retomada, frequentemente feita no contexto da analogia entre as forças soviéticas e as da Otan, geralmente revela o preconceito do interlocutor.             

Por último, a afirmação de que a Otan e os EUA estão meramente repetindo os erros da URSS cai por terra quando se compara as forças norte-americanas e soviéticas. As forças soviéticas nunca se adaptaram às demandas armamentistas de um ambiente como o Afeganistão e não promoveram mudanças substanciais em suas táticas e estruturas. Os jornais militares soviéticos escreveram pouco sobre a guerra em que estavam envolvidos e tentaram esquecê-la desde então, preferindo se concentrar no potencial combate de larga escala da Europa e do Leste Asiático contra a Otan.

Durante os vinte anos posteriores à batalha, as forças armadas soviéticas se abstiveram de realizar reformas e introduzir conhecimentos importantes, chegando ao ponto de Nikolai Makarov, chefe do Estado-Maior do Exército, ter recentemente condenado a Academia do Estado-Maior do Exército por não acompanhar o caráter mutável das guerras, disseminando um conceito arcaico e inaplicável de guerra contemporânea. Apesar da tentativa de reforma no início de 2008, a iniciativa, promovida com a intenção de tornar o exército russo capaz de lutar em combates como a atual guerra do Afeganistão ou se envolver em conflitos como os de Israel contra o grupo xiita libanês Hezbollah, em 2006, e do Hamas, em 2008 e 2009, a literatura russa ainda não discute adequadamente os desafios apresentados por conflitos desse gênero ou estimula um debate aberto dos documentos globais sobre esse tipo de guerra.

Essa estagnação, obstrução aos esforços de reforma, e falta de receptividade ao novo pensamento realmente não caracterizam a resposta militar dos EUA.  É claro que as instituições militares não mudam num piscar de olhos. No entanto, o exército norte-americano tem passado pela difícil transição para se tornar uma força treinada para ações contra insurgentes.

O país aprendeu lições dolorosas e trágicas no Iraque e no Afeganistão, enquanto o Exército Vermelho se recusou a aprender com essas guerras ou a desenvolver novas rotinas de treinamentos que atendam as suas demandas específicas. Os Estados Unidos publicaram grandes trabalhos em níveis táticos, operacionais e estratégicos, dando orientação aos comandantes e tropas sobre como conduzir operações de combate à insurgência com base nessas guerras, e que também podem ser aplicadas a elas. Além disso, contribui muito ao promover um debate aberto em suas publicações militares sobre tais assuntos. Na verdade, há críticos nos EUA afirmando que o exército do país está perdendo sua capacidade de lutar em outros tipos de conflito armado devido à recente ênfase nos combates contra insurgentes.

Sem dúvida existem muitos casos em que as forças norte-americanas e aliadas podem ter imitado os erros soviéticos, e existem semelhanças importantes, especialmente em relação à posição do Paquistão como um santuário para os talibãs e para os mujahidin entre 1979 e 1989. Mas mesmo nesse aspecto, a postura do Paquistão na presente guerra, ainda que prejudicial, tem sido mais ambivalente do que naquele período, pois o país tem sido obrigado a realizar operações sérias contra o Talibã e seus aliados de tempos em tempos. Portanto, qualquer pessoa que argumente que Washington e Bruxelas estão simplesmente repetindo os mesmos erros de Moscou durante seu envolvimento de uma década no Afeganistão precisa apresentar melhores evidências e uma análise mais sólida do que foi exposto até agora.

Nada disso inibe a possibilidade do Talibã realmente prevalecer, especialmente quando os EUA e a Otan retirarem suas forças. Mas esse resultado certamente não será garantido agora. Moscou e aqueles que argumentam em seu nome contribuiriam mais se produzissem e divulgassem análises concretas da guerra da Rússia no Afeganistão, além do aprendizado que o país e os demais deveriam tirar daquela experiência.

Afinal, se formos julgar pela conduta de Moscou na sua própria operação contra insurgentes no Cáucaso do Norte, o exército russo ainda tem muito o que aprender. Por mais que as elites militares russas queiram esquecer seu passado no Afeganistão, apagar tudo sem tirar uma lição não é uma resposta adequada aos desafios estratégicos do nosso tempo.

 

Stephen Blank é professor do Instituto de Estudos Estratégicos do Colégio Militar de Carlisle Barracks, na Pensilvânia. Os pontos de vista aqui expressos não representam a opinião do exército, do departamento de Defesa ou do governo dos EUA.

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