As Nações Unidas autorizaram intervenções militares na Líbia e na Costa do Marfim com o objetivo explícito de proteger as populações locais. Pela primeira vez essa formulação foi usada de forma tão clara pela ONU para justificar a intervenção num conflito.
Para o especialista em direito internacional Bardo Fassbender, da Universität der Bundeswehr (Universidade Forças Armadas da Alemanha) em Munique, essa novidade ainda não denota uma mudança de rumo dentro das Nações Unidas. O que está ocorrendo é um conflito entre dois conceitos diferentes.
"A peace-keeping [manutenção da paz] tradicional, principalmente no Oriente Médio, foi concebida como rigorosamente neutra desde o início, no final dos anos 1940", afirma. Segundo essa concepção, as Nações Unidas agiam sempre em comum acordo com as duas partes e como um poder totalmente neutro, que visava proteger os interesses da população civil.
"E isso entrou agora em choque com uma nova tendência do Conselho de Segurança, que se engaja de forma muito mais ativa e com isso se coloca fortemente a favor de um dos lados", observa Fassbender.
Ele vê as recentes resoluções como formulações para se alcançar um consenso político, já que sempre é necessário obter uma maioria e evitar o veto de um dos membros permanentes do Conselho. O resultado é uma terminologia muito vaga.
"Por exemplo, o mandato é concedido para a proteção da população civil para a proteção de governos legítimos. Essas são expressões relativamente vagas, cujo significado é depois determinado pelo jogo do poder político."
Costa do Marfim
As Nações Unidas abriram caminho para a intervenção militar na Costa do Marfim com a resolução 1975, de 30 de março de 2011. Nela, o Conselho de Segurança constatou graves afrontas aos direitos humanos e ao direito internacional, também por parte de forças de segurança do Estado, e chegou à conclusão de que os ataques contra a população "possivelmente constituem um crime contra a humanidade".
A resolução salienta explicitamente que as tropas das Nações Unidas estão autorizadas a, "na implementação neutra de seu mandato, utilizar todos os meios necessários" para proteger a população civil da violência.
O uso de helicópteros de combate contra posições do presidente derrotado nas urnas, Laurent Gbagbo, definiu a luta de poder a favor do presidente eleito Allasane Ouattara. As reações da Rússia e da África do Sul evidenciaram como o tema é sensível. Os dois países criticaram duramente os ataques aéreos contra a residência de Gbabgo. A Rússia chegou mesmo a exigir uma investigação para determinar se a ação era proporcional à causa.
Líbia
Conflitos semelhantes ocorrem no caso da Líbia. Também lá se coloca a questão de quanto tempo os membros do Conselho de Segurança vão permanecer coesos diante de interpretações tão distintas do mandato.No país árabe, uma aliança internacional comandada pela Otan combate com aeronaves as tropas leais ao ditador Muammar Kadafi. A operação está respaldada pela resolução 1973 das Nações Unidas, de 17 de março de 2011. No documento, o Conselho de Segurança fala de um "crasso e sistemático desrespeito aos direitos humanos". Por isso, o mais poderoso órgão da ONU autorizou a aliança internacional a usar "todas as medidas necessárias" para proteger a população civil, porém sem o uso de tropas terrestres estrangeiras.
Proteger a população civil não significa automaticamente derrubar o regime de Kadafi, salienta o presidente da Associação Alemã das Nações Unidas, Thomas Bruha. Para ele, a resolução 1973 não contempla a derrubada do ditador. "Se os atores [as potências aliadas] perseguem esse objetivo é uma outra questão. Mas que, em minha opinião, não torna a ação militar automaticamente ilegal. Ela se torna questionável, do ponto de vista político."
Responsabilidade de proteger
As resoluções sobre a Líbia e a Costa do Marfim justificam as intervenções militares com a obrigatoriedade de proteger a população civil. É a primeira vez que isso acontece de uma maneira tão explícita. Nos dois casos, o Conselho de Segurança se baseia na "responsabilidade de proteger" (responsability to protect ou R2P).
Segundo esse conceito da política e do internacionais, se um Estado fracassa na defesa da sua população ou infringe os direitos humanos da sua população, a comunidade internacional não tem apenas o direito, mas também o dever de intervir.
Esse conceito está em debate desde os genocídios em Ruanda e nos Bálcãs. Mas ele continua não sendo aplicado, na maioria dos casos: por que há intervenções na Costa do Marfim e na Líbia, mas não na República Democrática do Congo ou no Sudão?
"O direito internacional é o direito da comunidade internacional como ela o pratica", responde Bruha, que é especialista em direito internacional. "Interesses particulares e várias constelações de interesses formam de certo modo a base da ação política. Ainda assim, é melhor exagerar na proteção e agir de forma desigual a tratar todos igualitariamente e não proteger ninguém."
Sobrertudo o poder de veto no Conselho de Segurança torna praticamente impossível formular de maneira clara os objetivos militares e políticos de uma intervenção internacional. No fim das contas, é o jogo de poder político que decide quando e onde a ONU vai intervir como paladina dos direitos humanos.
Autora: Sandra Petersmann / Alexandre Schossler
Revisão: Augusto Valente