Por Duncan Depledge – Texto do Quartz
Tradução, adaptação e edição – Nicholle Murmel
As tensões aumentaram no Ártico com as notícias de que a Rússia iniciou manobras militares de grande escala na região. Cerca de 40 mil soldados, 41 navios de superfície e 15 submarinos participarão das simulações para protidão em combate – uma enorme demonstração de força em uma área que há muito tempo é de valor estratégico para Moscou.
A Rússia pode estar retraçando suas fronteiras nacionais na Europa enquanto reafirma sua influência geopolítica, mas as demarcações equivalentes no Ártico nunca foram estabelecidas firmemente. Do ponto de vista histórico, a realidade é que vem sendo bem mais difícil para as nações garantir soberania sobre o oceano do que sobre continentes, mesmo que o oceano em questão seja coberto de gelo a maior parte do ano.
Durante séculos, a extensão de mar territorial de uma nação foi baseada na regra do “tiro de canhão” – um limite de três milhas náuticas tomando por base o disparo de um canhão em terra. Mas a lógica mudou com a Segunda Guerra, levando à Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar (CNUDM) em 1982.
Sob a CNUDM, cada país signatário tinha o direito de declarar águas territoriais num limite de até 12 milhas náuticas e uma zona econômica especial (ZEE) para até 200 ramos comerciais, desde pesca a exploração de petróleo. Os signatários poderiam ainda extender sua soberania para além dos limites da ZEE em até mais 150 milhas se conseguirem provar que a plataforma continental vai além de 200 milhas a partir da costa nacional.
Acerto pacífico
É comum ler a respeito de uma “disputa pelo Ártico”, na qual as nações interessadas – Dinamarca, Noruega, Canadá, Rússia e Estados Unidos – apostam uma corrida entre si para escavar a região. Na verdade, essa não é a descrição mais precisa.
Há duas dimensões no que ocorre no polo: uma legal e outra política. Em termos de legislação, esses cinco países com litoral voltado para o oceano polar procuraram junto à CNUDM estabelecer fronteiras e garantir soberania sobre um bom tanto do Oceano Ártico e o assoalho marítimo (exceto pelos Estados Unidos, que ainda não ratificaram a participação na Convenção).
Canadá e Rùssia também usaram dispositivos especiais subsidiados pelo Artigo 234 da CNUDM – que versa sobre o direito de soberania sobre águas congeladas – para fortalecer seus respectivos domínios sobre as rotas de navegação que começaram a surgir – a Passagem Noroeste e a Rota do Mar do Norte.
Em 2008 os cinco países emitiram a Declaração de Ilulissat, na qual se comprometiam a “acertar pacificamente quaisquer reivindicações concorrentes” usando o aparato legal fornecido pelas leis do mar. Esse compromisso se refletiu nas reivindicaçãos das plataformas continentais emitidas à ONU nos íltimos 15 anos: Rússia (2001), Noruega (2006), Canadá (2013) e Dinamarca (2014).
Essas propostas são todas para extensão de direitos exclusivos para plataformas continentais além de 200 milhas de cada litoral. O que resta é uma pequena área no centro da região polar que permaneceria sem “dono”, mas também gera preocupações acerca de territórios reivindicados por mais de um país.
Entre os interessados, a ONU pediu a Rússia que enviasse mais provas científicas que apoiassem seu pedido. O mesmo não foi feito para as outras nações, mas, uma vez que levará tempo até que suas propostas sejam avaliadas, ainda há a possibilidade. Até que os EUA ratifiquem a CNUDM o país não tem direito a reivindicação.
Fronteiras inseguras
O amparo legal só vai até certo ponto. A pergunta continua: o que acontece se as nações árticas se tornarem mais assertivas na delimitação de suas fronteiras ao norte?
Canadá e Dinamarca assumiram compromissos significativos com suas causas junto a Convenção da ONU, incluindo o desenvolvimento de estratégias de segurança. Em 2012 Copenhague estabeleceu um comando militar especial para os territórios árticos. Mas ao longo da última década, foi a Rússia quem traçou os planos mais avançados para suas forças na região.
Em termos econômicos, Moscou atualmente é quem mais tem a ganhar com o desenvolvimento industrial da zona polar. O “Ártico russo” contém reservas importantes de hidrocarbonetos, diamantes, metais e outros minerais com valor estimado em mais de 22,4 trilhões de dólaes. A área já é a maior produtora de metais raros e preciosos e abriga campos importantes de petróleo e gás.
Assim fica fácil enxergar por que o Kremlin anunciou em 2008 que usaria a região polar como “base estratégica de recursos” para o desenvolvimento sócio-econômico da Rússia no século 21. Em 2013 o governo russo acrescentou que esse desenvolvimento dependeria fortemente de investimento, tecnologia e expertise estrangeiros.
Ainda assim, essa abertura aparente aos negócios com o exterior veio acompanhada de um forte sentimento de segurança em relação a como Moscou conseguiria manter sua influência e autoridade no Ártico. O país tem receio de que um bloco ocidental se forme dentro do chamado Conselho do Ártico (as cinco nações com propostas na CUNDM, mais a Finlândia, Islândia e Suécia), e prefere negociar com cada nação de forma bilateral. Uma preocupação em particular é o potencial de a União Europeia e a OTAN se tornarem mais ativas nas questões polares, uma vez que todas as nações árticas são membros de uma ou de ambas as organizações.
O president Vladimir Putin já falou publicamente sobre a necessidade de restringir as tensões ao mínimo possível na zona polar, ao mesmo tempo em que embarcava em seu extenso programa militar e de segurança para a região – chegando a estabelecendo um comando estratégico para o local em dezembro passado.
O Kremlin mostrou em sua resposta ao incidente do Greenpeace 30, no qual ativistas do grupo ambientalista tentaram capturer uma plataforma de petróleo russa em 2013, que não irão tolerar nenhuma ameaça às atividades econômicas na área, nem permitir nenhum precidente que possa fragilizar a autoridade sobre o que o país, no fundo, enxerga como suas águas territoriais.
Incertezas futuras
Moscou enviará à ONU este ano um novo pedido para ampliação de sua zona econômica especial para dentro do Oceano Ártico (uma área de cerca de 1,2 milhões de quilômetros quadrados). As autoridades do país já colocam a situação como um caso de se a comunidade científica internacional aceitará ou não dados obtidos pela ciência russa.
Uma secunda rejeição das reivindicações pode alimentar as preocupações da Rússia sobre estar sendo preterida e cercada por rivais do Ocidente. Por outro lado, se a tese do país for aceita, o restante da comunidade internacional pode, e com razão, se preocupar acerca de como o Kremlin erá exercer sua autoridade dentro de fronteiras marítimas tão ampliadas no polo Norte. Isso porque a Rússia provavelmente continuará usando o Artigo 234 da Convenção sobre os Direitos do Mar para que possa ter total autoridade em sua ZEE extendida, com mínima consideração pelo direito de tráfego livre de inocentes.
A recente deterioração das relações entre Moscou e o Ocidente só deve acirrar ainda mais a questão de traçar fronteiras marítimas no Ártico. A Rússia vem se mantendo ativa no Conselho do Ártico e já pediu repetidas vezes que os assuntos da região não se misturassem com o trato da crise na Ucrânia. Ainda assim, nos próximos anos, os vizinhos do país devem continuar apreensivos em relação a como o Kremlin planeja negociar e proteger suas fronteiras ao longo do Ártico.