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A democradura argentina

As eleições de outubro passado na Argentina não apenas deram um segundo mandato à presidente Cristina Kirchner, como lhe permitiram recuperar a maioria na Câmara dos Deputados, perdida em 2009, e, com isso, assegurar a subordinação do Congresso Nacional aos ditames da Casa Rosada. Reempossada no começo do mês, Cristina não perdeu tempo em usar a supremacia política do governo para impor a sua agenda legislativa, em que se destacam propostas claramente destinadas a tolher a liberdade de expressão no país.

Do ponto de vista do kirchnerismo, faz todo o sentido: com a oposição fragmentada por disputas paroquiais e desacreditada pela sua impotência em face do rolo compressor do oficialismo em todas as frentes, incluindo o Judiciário, sobrou um único obstáculo à transformação do país numa versão austral da "democradura" chavista: os setores da mídia que não se acoelharam diante dos atos de intimidação e de sua formidável prontidão para corromper.

Para se ter ideia, no ano passado os gastos do governo com publicidade somaram o equivalente a US$ 288,2 milhões, três vezes mais do que em 2008, o primeiro ano de Cristina no poder. O Executivo federal é o maior anunciante do país. E a distribuição das verbas de propaganda obedece – como quase tudo o mais nas relações do Estado argentino com a sociedade – à lei do cão.

O jornal Pagina 12, outrora independente e mordaz, foi contemplado com US$ 5,6 milhões como prêmio por ter passado a fazer parte do sistema de controle social adotado pela Casa Rosada. Já o outrora aliado Clarín, o principal diário do país e um dos maiores do mundo em espanhol, recebeu a quirera de US$ 400 mil, apenas para constar, desde que começou a criticar o kirchnerismo, há três anos.

O estrangulamento do matutino e, mais ainda, do bem-sucedido conglomerado de mídia que o edita se tornou uma obsessão da presidente. Esse intento está na raiz da Lei de Serviços Audiovisuais (também chamada Lei de Meios) aprovada parcialmente em fins de 2009 e atualmente sub judice. O texto estabelece limites à participação privada nos setores de rádio e TV, o que obrigará o Grupo Clarín – se o governo impuser por inteiro a sua vontade – a abrir mão do controle acionário de um número talvez significativo de emissoras.

O cerco à imprensa é uma operação concatenada. O novo chefe de gabinete de Cristina, com efeito, é o ex-secretário de Comunicação Juan Manuel Abal Medida, um dos autores da lei de mídia. Na Argentina, a chefia do gabinete presidencial equivale, em tese, ao Ministério de Relações Institucionais no Brasil: o seu titular é o interlocutor natural do governo com o Congresso e condutor da sua articulação política. Cristina deve estar muito satisfeita com o seu trabalho.

A toque de caixa, o Parlamento aprovou dois sinistros projetos kirchneristas. O primeiro, que declara de "interesse público" a produção, venda e distribuição de papel-jornal, passou na Câmara por 134 votos a favor ante 93 contra, na última semana. Na quinta-feira a dose se repetiu no Senado (41 a 26). O objetivo escancarado do governo é se apropriar da única empresa do setor no país, a Papel Prensa, cujos sócios privados, o Grupo Clarín e o que edita o jornal La Nación, detêm ao todo 71% do seu capital.

O Estado argentino, 27%. Com a nova lei, a sua participação poderá se ampliar enormemente – isso se a companhia não for sumariamente expropriada, ficando a imprensa à mercê da Casa Rosada para ter acesso ao insumo e não precisar recorrer a fornecedores estrangeiros. O segundo ataque liberticida, via Congresso, foi mais engenhoso.

Também na quinta-feira o Senado completou a aprovação de uma lei antiterrorista, feita para aterrorizar, isto sim, o jornalismo. O governo poderá enquadrar na lei o noticiário da imprensa que possa provocar especulação financeira, cambial ou uma corrida aos bancos – ou ainda "ameaçar a governabilidade". Evidentemente, isso permitirá à Casa Rosada considerar terrorista qualquer notícia ou comentário que o seu ocupante não gostaria de ver divulgados – desde uma denúncia de corrupção nos negócios oficiais à exposição de graves desequilíbrios nas contas internas. Uma ditadura não faria melhor.

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