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“A bomba atômica é inútil e obsoleta”

José Galisi Filho

O historiador, escritor, jornalista e dramaturgo americano Richard Rhodes, 73 anos, é reconhecido como o maior estudioso da corrida armamentista no mundo. Especialista nas pesquisas sobre a Guerra Fria, ganhou o Prêmio Pulitzer em 1986 com o livro “A Construção da Bomba Atômica”, que se tornou um clássico sobre o assunto. Rhodes tem um estilo capaz de transformar áridas discussões tecnológicas e embates sobre inteligência militar em enredos dignos dos melhores thrillers policiais. Tanto no campo da ficção quanto na dramaturgia ou em seus textos documentais, ele vem sustentando que ninguém no mundo estará a salvo enquanto existirem arsenais nucleares em algum canto do planeta.

A bomba atômica deixou de representar mais segurança para a nação que a detém. “As armas nucleares tornaram-se completamente inúteis”, diz ele. Hoje, segundo Rhodes, enquanto no mundo civilizado é impensável o uso de uma bomba atômica para resolver conflitos militares, a maior ameaça nuclear vem do mercado negro das organizações terroristas. “No 11 de setembro, a Al Qaeda deixou a inequívoca mensagem de que seu próximo ataque será com um artefato nuclear”, ressalta.

Durante 30 anos Rhodes dedicou-se a estudar a simbiose entre a grande ciência e a política, materializada em 1945, quando o mundo viu a bomba atômica destruir as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Ele considera que seus estudos sobre a Guerra Fria foram concluídos no ano passado com a publicação do quarto volume do monumental “O Crepúsculo das Bombas”. Numa entrevista exclusiva à ISTOÉ, Rhodes falou sobre os riscos de uma nova corrida armamentista, sobre a nova doutrina Obama para os arsenais nucleares e mostrou que, hoje, a luta contra a proliferação das armas atômicas deixou de ser tarefa exclusiva de pacifistas sonhadores.

Istoé – As ameaças do terrorismo internacional podem motivar uma nova corrida armamentista nuclear?
Richard Rhodes – Houve uma mudança fundamental nessa situação, percebida até por setores conservadores. Grupos subnacionais, como a Al Qaeda, que não têm territórios ou uma população para defender, podem vir a ter acesso ao poder incomensurável de materiais enriquecidos. Isso representa uma ameaça existencial para os Estados Unidos. No entanto, a resposta que o presidente George W. Bush deu ao 11 de setembro, atacando um país que não tinha absolutamente nada a ver, atirando às cegas, acabou fortalecendo a ação desses grupos com o caos que se seguiu à invasão do Iraque.

Istoé – Então, estamos numa situação pior do que antes do ataque?
Richard Rhodes – Sim. Nem os Estados Unidos nem outros países estão seguros enquanto dispuserem de um arsenal nuclear com base na ameaça. Isso não representa mais nenhuma segurança. É exatamente o contrário.

Istoé – Parece que o legado dos anos Bush foi a organização do medo e da vulnerabilidade, que estavam enraizados nos EUA desde a Guerra Fria…
Richard Rhodes – Bush não entendeu uma lição estabelecida desde a Guerra da Coreia: num mundo nuclear é impossível ter uma vitória clara. Vivemos numa situação em que armas nucleares são completamente inúteis.

Istoé – Como podem ser inúteis com um poder tão devastador?
Richard Rhodes – Armas nucleares são obsoletas. É preciso entender que elas só foram efetivamente armas de guerra numa única situação: quando apenas um país detinha seu monopólio. E se continuamos ainda a nos apegar a elas é por não termos nada melhor em que pensar. Depois do Holocausto, de Hiroshima e Nagasaki, a ideia de que a destruição pode ir até o fim, sem limites, se tornou um tabu civilizatório na arena da nação-estado. Ficou claro que não podemos viver num mundo em que populações inteiras possam ser destruídas. Isso representou uma mudança moral na natureza da guerra entre as nações-estado. Reduzir o dano colateral virou imperativo moral. Após a Guerra Fria, a ideia da destruição total deslocou-se para as guerras civis e tribais como em Ruanda, ou como na guerra civil na ex-Iugoslávia.

Istoé – O que esperar do futuro, então?
Richard Rhodes – As potências nucleares remanescentes vão perceber gradualmente que essas armas são, em primeiro lugar, perigosas para si mesmas, pois conduzem à ameaça por outras potências e vizinhos. E a longo prazo vão perceber que seus arsenais são inúteis e é melhor viver num mundo sem armas nucleares.

Istoé – Os Estados Unidos estão nesse caminho?
Richard Rhodes – A sociedade americana começou a perceber que o segredo e o poder das comunidades de inteligência tomaram conta de nossas vidas. Isso se iniciou com o segredo das armas nucleares do complexo militar e lentamente inundou grandes setores do governo. Hoje esse avanço ameaça engolir todo o processo democrático. O 11 de setembro consolidou o poder de um enorme aparelho de segurança, a Homeland Security Agency, que está se infiltrando em cada poro da vida cotidiana. Posso parecer paranoico, mas é exatamente isso que está ocorrendo. Conduzir uma política externa secreta num mundo completamente armado tem como efeito, a longo prazo, a atrofia dos processos democráticos.

Istoé – Existe algum meio de os EUA se protegerem de um ataque nuclear?
Richard Rhodes – Um meio efetivo não existe, salvo a atividade policial rotineira e a espionagem tradicional.

Istoé – Os EUA perseguem o programa espacial “guerra nas estrelas”, enquanto a China e outras nações começam a desafiar a hegemonia americana nessa corrida. Como o sr. vê a militarização do espaço?
Richard Rhodes –  Não é nada fácil ter armas espaciais porque não é fácil ter máquinas que olhem para baixo, coletem e filtrem todas essas informações espalhadas pela superfície ao mesmo tempo. No entanto, é muito mais fácil construir um sistema antissatélites, capaz de tirá-los de órbita. Embora o aparato militar americano, bem como o de outros países, ainda sonhe com estações orbitais, penso que o mais importante aspecto do uso militar do espaço ainda esteja na terra, como ficou demonstrado nas duas guerras do Iraque. É justamente a simbiose das informações em tempo real entre o campo de batalha e os satélites que vai determinar o futuro da guerra convencional.

Istoé – O presidente Barack Obama disse, em seu discurso em Praga, que os EUA se comprometem a não usar artefatos nucleares contra Estados não-nucleares, mesmo se atacados com essas armas. A proposta do arsenal zero é realista? Podemos voltar os ponteiros do relógio?
Richard Rhodes -Estou muito otimista com Obama, porque “sim, nós podemos” voltar os ponteiros do relógio. Obama está retomando a ideia da segurança comum e dos mecanismos de controle multilaterais. Não pode haver um país que diga, “deixo inspecionarem essa parte de nosso território, mas aquela não”. Esse é um dos pressupostos da posição de Obama. Mas muitos países não gostam da ideia de que tudo deve ser aberto, porque as inspeções poderiam parecer sinais de fraqueza. O segundo pressuposto colocado por Obama é que, num mundo sem armas nucleares, você teria de manter a capacidade de recompor seu arsenal se fosse necessário – isso se alguém trapaceasse e não pudesse mais ser detido. Essa ideia vem sendo denominada “arsenal virtual”.

Istoé – E como ficariam os países que não são signatários do Tratado de Não Proliferação Nuclear?
Richard Rhodes – Claro que há exceções, como a Coreia do Norte e o Iraque. Mas eles são pequenos países periféricos. O Irã é um outro caso muito especial. Mesmo assim, acho que valeria a pena viver num mundo sem armas nucleares. Muitos argumentam que, se chegássemos nesse ponto, estaríamos criando um mundo mais seguro para as guerras convencionais. Acho que não. A possibilidade de uma guerra convencional escalar direto para um confronto nuclear seria igual à de hoje. Não mudaria em nada. Então, por que não tentar zerar? Esse seria um passo fundamental para o Oriente Médio.

Istoé – Falando em Oriente Médio, imaginemos um cenário de horror, em que extremistas islâmicos tomassem de assalto o poder no Paquistão. Os americanos têm um “plano B” para neutralizar um arsenal de 40 ogivas, por exemplo?
Richard Rhodes – Seria chocante se os Estados Unidos não tivessem um plano. Seria uma insanidade não tê-lo. Sei que o Paquistão, intencionalmente, dividiu seu arsenal nuclear e o dispôs em diversos lugares pensando justamente na hipótese de militantes radicais tomarem o poder, construindo uma arma suja com o material enriquecido pilhado. E se a Al Qaeda tivesse acesso à parte desse material enriquecido? Não sei se os Estados Unidos, a Otan e a Rússia seriam capazes de recuperá-los a tempo. Perguntas como essas mostram mais uma razão para eliminar de vez armas nucleares de nossos arsenais. Imaginemos uma troca nuclear entre Israel e Irã, ou Índia e Paquistão. Seria um horror além da imaginação na história humana em termos de mortes e danos ambientais. Os novos modelos climáticos mostram que uma guerra entre Índia e Pasquistão levaria a uma nova pequena era glacial. Não estamos seguros enquanto essas armas estiverem disponíveis.

Istoé – Como o sr. avalia o papel da diplomacia brasileira na mediação do conflito com o programa nuclear iraniano?
Richard Rhodes – Fiquei bastante impressionado em ver essa iniciativa mediadora. Justamente uma região que permaneceu à margem nas últimas décadas deu um passo à frente para contribuir nessa negociação complicada. Foi muito positivo. Houve muitas críticas nos Estados Unidos, porque parecia que o Brasil, sendo mediador, não estava se alinhando ao lado norte-americano. Mas a tarefa de um mediador não é escolher um lado, mas achar os pontos comuns para uma negociação.

Istoé – Mas muitos brasileiros pensam que o País não tem interesses vitais na região e estaria dando um passo maior que as pernas.
Richard Rhodes – Eu acho positivo. Estados Unidos e Irã têm uma relação envenenada há 30 anos, permeada por ódios e desconfianças já tão profundas que fica muito difícil sentar à mesa. Justamente por estarem fora é que os brasileiros podiam tentar algo. Nas últimas décadas, os melhores negociadores para refrear ânimos são os pequenos, os independentes, como a Suécia e a Dinamarca.

 

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