Matéria da Radio França Internacional
Gabriel Brust
Um senador da república milionário, octogenário e proprietário de meios de comunicação, governa durante anos uma região do interior usando práticas clientelistas e abusando da compra de votos nas regiões mais pobres para se perpetuar no poder. A descrição poderia tranquilamente ser aplicada a certos coronéis da política brasileira, não fosse pelo fato de que este senador começará hoje mesmo a responder na Justiça pelas acusações de corrupção.
Serge Dassault, o dono da quinta maior fortuna da França, será ouvido pela primeira vez pelos juízes de instrução de Paris sobre os supostos crimes de compra de votos e lavagem de dinheiro ocorridos entre 2008 e 2010. O período corresponde ao final da sua dinastia de 15 anos como prefeito da cidade de Corbeil-Essonnes, cerca de 30 quilômetros ao sudeste de Paris.
Dassault é, com frequência, descrito como o Cidadão Kane francês – uma referência ao magnata da imprensa americana William Hearst, eternizado no filme de Orson Welles. O seu grupo industrial atua nos mais diferentes mercados. O braço armamentista, por exemplo, fabrica os aviões Rafale, que a França tentou, sem sucesso, vender ao Brasil. Na mídia, Dassault possui o jornal conservador Le Figaro, um dos mais tradicionais da França.
A permanente proximidade com o poder impulsionou o crescimento da fortuna da família, segundo o especialista em crimes financeiros Thierry Colombié: "O Estado na França e todas as pessoas que podem ter uma posição dominante no Estado se aproveitam plenamente”, afirma Colombié. “É um caixa muito importante. Se você tem uma posição de senador ou deputado e ao mesmo tempo é um homem de negócios e ainda recebe subvenções para fabricar helicópteros, aviões e armas, você só pode ficar em uma posição dominante."
Tentativa de assassinato
Segundo as acusações, o milionário teria transformado a cidade de Corbeil-Essones em um feudo particular, controlando os bairros pobres através do suborno sistemático de líderes populares para vencer as eleições. Dessa forma, conseguiu transformar uma região tradicionalmente socialista em um bastião da direita francesa de 1995 até os dias atuais.
Os valores que circularam no esquema chegariam a 7 milhões de euros e parte desse dinheiro pode ser também a responsável por uma tentativa de assassinato – a cereja do bolo deste cenário de contornos mafiosos. Um dos braços direitos de Dassault, Younès Bounouara hoje está preso por ter dado um tiro em outro morador do bairro de Tarterêts. O cerne da disputa teria sido uma bolada de 2 milhões de euros que Bounouara recebeu de Dassault para distribuir na região. O milionário admite ter repassado a soma, mas nega que o dinheiro fosse destinado a suborno.
Para Thierry Colombié, o caso é inédito na política francesa de várias formas: "O que é ainda mais raro neste caso é que temos suspeitas de pagamento oculto, suspeitas de extorsão e tentativa de assassinato. Temos traficantes que são utilizados pelo sistema para comprar votos. O que é interessante nesse sistema de compras de voto é que não se trata simplesmente de se apropriar dos votos, mas principalmente restaurar um clima de paz social em bairros perigosos."
Quebra da imunidade parlamentar
As suspeitas sobre os supostos crimes começaram em 2009, a partir de depoimentos de moradores do mesmo bairro de Tarterêts, famoso por seu intenso tráfico de drogas. Dassault, hoje senador eleito pela mesma região, conseguiu se proteger das investigações graças à imunidade parlamentar.
Tudo mudou na semana passada, quando o senado francês decidiu retirar a imunidade, após o terceiro pedido da Justiça. O próprio senador pediu a retirada, afirmando que poderá provar a sua inocência ao longo do processo. A questão é saber se ele terá forças para tanto.
Aos 89 anos, Dassault será interrogado em pleno hosptial Hotel-Dieu, devido a sua saúde fragilizada. Ele terá autorização da justiça para passar a noite em casa, mas deverá se reapresentar para novo interrogatório na manhã de quinta-feira (20).
O cientista político brasileiro Roberto Fragale, professor da Univesidade Federal Fluminense, ressalva que apesar das semelhanças aparentes, na essência o caso não se aproxima do coronelismo como o conhecemos no Brasil. A figura poderosa de Dassault no cenário nacional e até mesmo internacional o tornam uma figura única: “É um pouco mais complexo. A relação de Serge Dassault com o país é diferente. Temos uma inserção um pouco distinta. Embora tenhamos circunstâncias como a alegação de compra de votos, e é preciso cautela porque são até agora alegações,não temos necessariamente as mesmas conjunturas que possibilitem fazer essa associação entre coronelismo e esta denúncia.”