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FEB – Você Sabe de Onde eu Venho – O Despertar

VOCÊ SABE DE ONDE EU VENHO

Honra ao mérito

 

Com a publicação do último capítulo do folhetim Você Sabe de Onde Eu Venho, o escritor Tabajara Ruas completa uma jornada acompanhada pelos leitores de Zero Hora todos os sábados, desde o dia 14 de janeiro de 2012, na contracapa do Caderno de Cultura. Pelos 50 capítulos da narrativa inspirada na participação do Brasil na II Guerra Mundial passaram personagens reais e fictícios, em torno de cinco figuras centrais: um soldado de infantaria, um sargento, uma enfermeira, um oficial de comunicações e um oficial aviador. A ação transcorre durante a campanha da Itália, da qual o Brasil participou com a Força Expedicionária Brasileira (FEB).

No último dia 12, o tradicional almoço que reúne os veteranos gaúchos, em Porto Alegre, teve caráter de comemoração e agradecimento.

– Eles queriam expressar seu contentamento com a série. Estavam emocionados e deixaram claro que o folhetim foi das poucas manifestações não oficiais que reconheceu o mérito da participação da FEB no conflito – relata o escritor. – À medida que começaram a ser publicados os capítulos, muitos veteranos e familiares enviaram cartas, e-mails ou telefonaram, dando apoio, corrigindo ou sugerindo questões.

Tabajara admite que sua percepção em relação à epopeia dos pracinhas da FEB mudou – foi uma ação maior do que imaginava: tendo participado apenas nove meses de uma guerra que durou seis anos, foi, proporcionalmente, a segunda tropa a permanecer mais tempo em combate. Além disso, os reflexos no Brasil e sua relação com o mundo se revelaram mais expressivas do que ele esperava.

Roteirista e produtor do filme Netto Perde sua Alma, baseado em seu livro homônimo, diretor do documentário Brizola – Tempos de Luta e do longa de ficção Netto e o Domador de Cavalos, Tabajara afirma:

– Gostaria muito de passar essa saga para o audiovisual.
 

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Capítulo 50  –  O despertar


Tabajara Ruas


“Isto não é uma atochada, praça” disse o capitão Marcos para Pedrinho, depois do demorado silêncio rodando pelas estradas repletas de comboios, carros de rodas para o ar, tanques incendiados e famílias de refugiados em farrapos estendendo as mãos e pedindo alimento. “Não, capitão?” “Não. É um assunto sério. Uma missão.” A “tocha” era como os soldados, oficiais, sargentos, praças, todo mundo, chamavam o abandono das linhas de frente, geralmente surrupiando um jipe, para passeio numa cidade próxima, visita a alguma namorada ou a ida a bordel improvisado na beira da estrada por cafetões com espírito empreendedor.

Pedrinho olhava para o capitão Marcos, o misterioso capitão Marcos, de quem ouvira histórias raras, e pensava para onde ele o estava levando. Nesse exato instante, três horas da tarde do dia 30 de abril de 1945, quando pensava que missão seria essa, a 600 quilômetros dali, no escuro bunker no centro de Berlim, Adolf Hitler estava colocando a ponta da sua pistola Walther na boca, onde já boiava uma capsula de cianureto. Sua amante, Eva Braum, jazia no sofá, parecendo adormecida. Eva, 33 anos, tentara pouco antes se matar com aquela mesma pistola, mas não conseguira e ingerira veneno. Agora eles eram apenas mais dois dos 50 milhões de mortos que o sonho do nazismo custou. Lá fora, o exército russo entrava na capital da Alemanha, já chegava ao centro de Berlim, em longas e assustadoras filas. A população civil fugia em bicicletas, carroças e a pé.

Os ruídos dos canhões faziam tudo estremecer. Ouviam-se paredes desmoronando. Pedrinho apertava o pé no acelerador. “Em frente!” comandava o capitão Marcos e eles seguiam em frente, sempre para a frente, através de vilas abandonadas, cidades fantasmas, pontes destruídas, camponeses que acenavam de longe. Ás vezes, parando para Pedrinho incrédulo ver o capitão Marcos descer do jipe e dirigir-se resoluto a algum oficial de um comboio americano. Falava gesticulando com energia e voltava com um galão de gasolina na mão. A noite de primavera caiu e Marcos tomou a direção. Pedrinho dormia profundamente apesar dos solavancos. Amanheceram numa encruzilhada, com placas sinalizando nomes de cidades que Pedrinho mal podia soletrar. “Onde estamos, capitão?” “França, meu rapaz. Na verdade, saindo da França. Ali adiante é a Alemanha, e é pra lá que a gente vai.” Mastigaram as rações, beberam água dos cantis e tornaram a encarar a estrada. O capitão Marcos começou a consultar um mapa. Finalmente ele disse: “Estamos chegando.” Uma divisão americana bloqueava a estrada. Marcos falou longamente com um sargento, depois um tenente, depois um capitão, mostrando uma carteirinha e documentos até que chegou alguém a paisano, conferiu os documentos e fez sinal para que o seguisse. Pedrinho dirigiu o jipe atrás do homem e então viu a paliçada, o grande portão e os guardas.

Pedrinho percebeu que o capitão Marcos endurecia o corpo quando transpuseram os portões. Seus olhos demoraram a decifrar o significado das roupas que as pessoas vestiam, roupas cinzas com listas negras, em farrapos, enormes nos corpos magérrimos e então o brusco horror de ver os corpos só pele e osso e os terríveis olhos no fundo das órbitas e os olhares que lhes dirigiam e eram centenas e mais ainda, milhares, se movendo como numa onda, lentos, adormecidos, semivivos, arrastando os pés e movendo os braços sem sentido nem direção. Estacionaram ao lado de uma fila de caminhões e eles estavam carregados de corpos, aqueles corpos só pele e osso, uns sobre os outros, homens, mulheres, velhos, crianças, e estavam mortos. Mortos.

O capitão Marcos entrou num pavilhão onde um oficial nazista era interrogado. Pedrinho deu alguns passos vacilantes, espiou por uma janela para dentro dum alojamento e viu os mortos vivos nos beliches, viu os braços pendendo no ar, o silêncio vagando no ar fétido e podre. “Era possível, entendeu, era possível” dizia o oficial nazista com os olhos brilhantes de medo e de audácia, encarando seus interrogadores. “Exterminar os judeus era possível e não fomos nós que inventamos a ideia do genocídio. A prática é política, política, nada mais do que isso e remonta há muitos séculos.

Os ingleses provaram isso quando exterminaram os tasmanianos. Povos inteiros foram exterminados no Congo Belga e na Namíbia. O senhor compreende, a Tasmânia era uma ilha habitada por um povo há dez mil anos e os ingleses foram lá e em poucos anos os tasmanianos foram sistematicamente caçados, assassinados e deportados pelos agentes britânicos e assim acabaram com todos, todos, entendeu, em grupos ou de um a um, a raça tasmaniana acabou quando só restou uma mulher, o nome dela era Trugonini, ela morreu em 1869, seu corpo foi dissecado, e seu esqueleto, depois de medido e devidamente estudado, está exposto em uma vitrine no Museu Hobart de Londres, e se eles fizeram isso por que nós não poderíamos também fazer, me responda, capitão, me responda!” Marcos deu as costas, olhou o campo de extermínio, o arame farpado, os galpões onde funcionavam os fornos crematórios, a multidão de esfarrapados se movendo lentamente com aquelas rígidas máscaras moribundas, o silêncio, o silêncio que era levemente roçado pelos passos vagarosos e sem rumo. Pedrinho se aproximou de Marcos.

Queria gritar, mas nem para gritar tinha forças. “Capitão, quero ir para casa” disse num fio de voz. O capitão olhou para ele. Dirigiram-se para o jipe. Fizeram a viagem de volta em silêncio. Depois que regressaram a unidade Pedrinho nunca mais encontrou o capitão Marcos e nunca mais voltou a sentir aquela sensação de desamparo absoluto, a não ser muito tempo depois, quando mataram Maciel, seu primogênito, com a idade de 20 anos.

* * *

O pesadelo tinha acabado. Agora, tinham de lidar era com o despertar. Os brasileiros voltaram com a consciência tranquila: todas as missões que lhes foram confiadas eles cumpriram integralmente. Diante da monstruosidade do conflito, a participação foi pequena, mas fundamental: conquistando Monte Castelo a FEB derrubou a última muralha que impedia o avanço para Berlim. A FEB teve 433 mortos e 3 mil feridos. Capturou 20.573 prisioneiros. Lutou de setembro de 1944 a maio de 1945, apenas nove meses dos seis anos da guerra. Entretanto, há um dado dos arquivos

Aliados que revela o tamanho da aventura da FEB na Itália. Pela quantidade e intensidade do seu emprego, a FEB foi, proporcionalmente, a segunda tropa que ficou mais tempo em ação durante o conflito. Os pracinhas tiveram uma grande aclamação em sua chegada no Rio de Janeiro, mas uma semana depois foram desmobilizados. Talvez Getúlio não gostasse de ter em suas mãos um exército experimentado em derrubar tiranos. E então os pracinhas foram voltando para suas cidades e estados. Alguns não tinham dinheiro para a passagem e dormiram nas ruas. Muitas promessas de aposentadoria e de soldos polpudos nunca se cumpriram. Tudo era um pouco estranho. As multidões nas ruas sem medo de bombardeios ou fome ou massacres. Conversas inconsequentes sobre futebol. Filmes com Oscarito e Grande Otelo nos cinemas. Mas todos eles sonhavam a noite com os horrores que tinham vivido. Todos despertavam com um gosto amargo, como se estivessem cegos e tateassem a procura de uma voz amiga. A

lguns enlouqueceram. Alguns se mataram. Outro, mais esperto, conseguiu uma aposentadoria milionária. Dulce ficou no exército e fez brilhante carreira militar. Zoé voltou para Recife, casou e nunca mais entrou num quartel. Virginia foi morar em Londres. Pedrinho e Atílio voltaram a fazer a dupla de ataque do Imbituba, mas sem o mesmo sucesso de antes. O alemão João Wogel chegou em casa e foi recebido com uma grande festa. O kerb durou uma semana com mesa farta e dezenas de barris de chope, com direito a discurso do prefeito.

* * *

Passaram os anos, que é o que fazem. Pedro Diax andou algum tempo embarcado na marinha mercante, mas voltou a Imbituba e abriu uma mercearia. Casou e teve dois filhos, Maciel e Aldemir. O gago Atílio ganhou na loteria, mas perdeu tudo no jogo e na bebida. Tinha ataques de pânico. Pedrinho ia busca-lo em becos fedendo a urina. O gago chorava e falava incoerências. O Brasil perdeu uma Copa em casa. Mas depois ganhou cinco. Alguns generais da FEB chegaram ao poder, mas não foi pelo voto. O Brasil se tornou mais triste. Nos fins de semana Pedrinho se afastava de todos, subia na duna e ficava olhando o mar.

Tomava chimarrão, sozinho, hábito que adquirira com o cabo Quevedo. Pedrinho gostava de ficar assim, sozinho, lembrando. Gostava mesmo era do mês de junho, quando vinham as baleias. Em alguma coisa o mundo tinha melhorado. Ninguém mais saía atrás de baleias com arpões e fuzis. Em algum momento da tarde chegava a lembrança do primogênito, Maciel. Disseram-lhe que foi morto num quartel da aeronáutica, no Rio de Janeiro, mas ele nunca viu o corpo. Não ficou sabendo se isso era mesmo verdade nem como ele foi morto. Disseram que era um subversivo, que teve o fim que buscou. Pedrinho não disse nada. Era outro tempo, outra guerra. Mas a lembrança chegava e ficava ali com ele.

* * *

Na tarde dominical fria e cheia de sol, sentado no alto da duna, olhando a dança das baleias, o velho Pedrinho pensa no filho. As gaivotas dão voos rasantes e gritam.

Há uma grande paz no mar e na tarde. Mas Pedrinho não se engana. Ele sabe: o maior e mais cruel dos monstros, a fúria humana, está à espreita, sempre, do nosso silencioso desespero.

FIM

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