O FIM DA ERA DE ACORDOS SOBRE LIMITAÇÃO DE ARMAMENTOS
SERGIO DUARTE
Embaixador, ex-Alto Representante das
Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento.
Presidente das Conferências Pugwash sobre
Ciência e Assuntos Mundiais.
No último dia 7 de novembro o Tratado sobre Forças Convencionais na Europa, conhecido pela sigla CFE, que estava em vigor desde 1992, deixou formalmente de existir devido ao transcurso do prazo dado pela Rússia para seu término. Em consequência, o instrumento deixará igualmente de ter validade jurídica para os 22 membros da OTAN a partir do próximo dia 7 de dezembro.
Com a progressiva deterioração do relacionamento entre as duas principais potências a partir do final do século passado, os dispositivos principais desse tratado já não vinham sendo observados há vários anos. Moscou suspendeu a aplicação do CFE, em 2007, e a OTAN acabou por fazer o mesmo, em 2011.
Após um breve intervalo imediatamente após o final da Guerra Fria a consciência dos líderes e do público em geral parece haver sido dominada por uma atitude de complacência em relação ao armamento nuclear. Gradativamente, a arquitetura multilateral e bilateral de controle de armamentos construída ao longo das décadas anteriores foi sendo desmantelada.
Além do Tratado sobre Forças Convencionais acima mencionado, que durante anos contribuiu positivamente para assegurar previsibilidade e estabilidade no relacionamento entre as duas alianças militares na Europa, outros marcos importantes na distensão e cooperação internacional acabaram por ser rescindidos ou suspensos. Entre esses estão o Tratado sobre Mísseis Antibalísticos (ABM), o Tratado sobre “Céus Abertos” (Open Sky) e alguns mecanismos de diálogo e consulta, assim como o acordo sobre o programa nuclear iraniano (JCPOA). O único remanescente é o tratado entre os Estados Unidos e a Rússia sobre limitação de ogivas nucleares e seus vetores, assinado em 2010 e conhecido como Novo START.
Oriundo dos acordos de Helsinki do final dos anos 1970, o CFE foi assinado em 1990 no contexto do conjunto de esforços para a redução de tensões no continente europeu. Três anos antes havia sido concluído e implementado com sucesso o tratado INF sobre forças nucleares intermediárias, que resultou na retirada dos mísseis nuclearmente armados de alcance até 5.000 km tanto do lado da OTAN quanto do lado russo.
Além da redução do armamento convencional de ambas as alianças e disposições sobre sua qualidade e distribuição territorial, o CFE instituiu medidas de fortalecimento da confiança, como trocas regulares de informações detalhadas, obrigação de notificação de movimentos de tropas, inspeções recíprocas e reuniões periódicas de um grupo consultivo sediado em Viena.
A origem remota do CFE é a ideia de “segurança comum”, proposta formalmente em 1982 por uma Comissão presidida pelo então primeiro-ministro sueco Olof Palme, que contribuiu positivamente para a promoção da distensão e cooperação no continente europeu. Segundo o relatório da Comissão Palme, nenhum país seria capaz de obter e manter sua segurança por meio de decisões unilaterais a respeito da disposição de suas forças militares, pois a segurança depende também das ações e reações de adversários potenciais e deve portanto ser encontrada em um esforço comum com estes últimos.
A Comissão destacou a importância das Nações Unidas e propôs uma ampla variedade de medidas de desarmamento, controle de armamentos e fortalecimento da confiança, inclusive a adoção de doutrinas militares menos ameaçadoras. Introduziu também a noção de que a segurança não deve limitar-se a tratar dos desafios puramente militares, mas também visar ameaças menos tradicionais à população e ao meio ambiente.
De então a esta parte o espírito de segurança comum foi aos poucos desaparecendo. Ao contrário, cada vez mais as grandes potências armadas (mas não apenas essas) tratam de reforçar sua própria segurança nacional mediante o constante aperfeiçoamento de sua capacidade bélica, tanto nuclear quanto convencional, em uma arriscada corrida em busca de uma ilusória superioridade militar.
Essa situação preocupa analistas de relações internacionais tanto no Ocidente quanto no Oriente. Na verdade, seja por falta de condições objetivas ou por carência de vontade política, não tem sido possível negociar, e muito menos concluir, novos acordos que aparentemente desfrutariam de apoio geral. Alguns instrumentos anteriores sobreviveram até agora, mas enfrentam graves dificuldades.
Um caso digno de atenção é o do Tratado de Proibição Abrangente de Ensaios Nucleares (CTBT), concluído em 1996, que respondeu a um antigo anseio da comunidade internacional porém até hoje não entrou em vigor devido à falta de assinatura ou ratificação de alguns estados-chave. A julgar pela recente decisão do Parlamento russo de anular sua ratificação, que data do ano 2000, e pelas atividades nucleares atualmente em curso tanto na Rússia quanto nos Estados Unidos e na China (que nunca o ratificaram), esse instrumento já não atende aos interesses das principais potências e estaria prestes a desaparecer, embora sem jamais ter visto a luz do dia.
A Conferência do Desarmamento, único órgão negociador de acordos sobre desarmamento no sistema das Nações Unidas, mostra-se incapaz, desde 1996, de iniciar quaisquer negociações substantivas e nem mesmo adotar um programa de trabalho. As propostas de negociação de um tratado de cessação da produção de matéria físsil para fins militares, inclusive a eliminação dos estoques existentes, (FM(C)T), languesce há vários anos na Conferência do Desarmamento junto com a sugestão sino-russa de um tratado sobre militarização do espaço exterior. Aliás, desde o início de sua existência a Conferência tem sido sistematicamente impedida de tratar substantivamente de qualquer proposta diretamente relativa ao desarmamento nuclear.
O Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), considerado a “pedra angular” da estrutura de acordos multilaterais no campo do desarmamento e controle de armamentos, enfrenta uma grave crise de credibilidade, apesar de haver tido sua validade estendida por tempo indefinido em 1995. Ao longo de sua história, seis dentre as onze Conferências de Exame até agora realizadas terminaram sem acordo sobre um documento final, inclusive as duas últimas, em 2015 e 2022.
A frustração dos países não nucleares com a aparente falta de interesse dos possuidores dessas armas em cumprir os compromissos de desarmamento constantes desse instrumento levou à negociação, sem a participação das potências nucleares e seus aliados, de um inovador Tratado de Proibição de Armas Nucleares, que entrou em vigor em 2021 e conta hoje com 93 signatários, dos quais 69 já o ratificaram.
Reunidos em 2021 em Viena, os presidentes Joe Biden e Vladimir concordaram em prorrogar o Novo START até 2026 e emitiram um comunicado oficial segundo o qual ambos os países se dedicariam no futuro próximo a um ”diálogo bilateral estratégico integrado” a fim de lançar as bases de medidas futuras de controle de armamentos e redução de riscos. A iniciativa foi bem recebida em todo o mundo mas até o momento não progrediu além dessa formulação. As sugestões construtivas foram sendo substituídas por retórica hostil.
Dado o lastimável estado das relações bilaterais qualquer avanço parece distante. A China, por sua vez, se mostra reticente em participar de futuras iniciativas de controle estratégico envolvendo as três principais potências nucleares. Os conflitos em curso na Ucrânia e no Oriente Médio tornam ainda mais difícil chegar novos entendimentos que levem adiante os esforços em prol do desarmamento.
O atual status quo no panorama dos acordos sobre desarmamento e controle de armamentos é claramente desanimador. É necessária uma compreensão mais profunda, não apenas de parte dos líderes mundiais, mas também – e talvez principalmente – do público em geral sobre os perigos existenciais para toda a humanidade decorrentes da existência e constante aperfeiçoamento dos arsenais nucleares e meios bélicos existentes. O que está em jogo é nada menos do que a permanência ou extinção da civilização humana tal como a conhecemos.