SERGIO DUARTE
Embaixador. Presidente das Conferências Pugwash
sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Ex-Alto
Representante das Nações Unidas para
Assuntos de Desarmamento.
A explosão experimental Trinity, em 6 de julho de 1945, que marcou o início da era atômica, foi realizada apenas 21 dias após a assinatura da Carta nas Nações Unidas. Por essa circunstância cronológica, a Carta não menciona as armas nucleares. No entanto, o choque e horror decorrentes dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki em 6 e 9 de agosto levaram a organização mundial a estabelecer, na primeira resolução da Assembleia Geral em janeiro de 1946, uma Comissão encarregada de apresentar propostas para a eliminação das armas nucleares. Mais tarde, no mesmo ano, a Assembleia reconheceu a urgência da necessidade de proibir o armamento atômico e todas as demais armas de destruição em massa.
Isso foi há setenta e oito anos. A Comissão criada pela Resolução no. 1 foi desfeita em 1948 e a atenção passou a concentrar-se em “medidas parciais” no campo nuclear, que se acreditava pudessem proporcionar a base para futuro progresso. Ao longo das décadas seguintes foi possível adotar certo número de acordos internacionais visando impedir a disseminação de armas nucleares, assim como algumas medidas de limitação. Duas categorias de armas de destruição em massa – bacteriológicas e químicas – foram banidas por meio de convenções multilaterais. No entanto, as armas nucleares continuam a assombrar a humanidade. Os nove países que as possuem se empenham em aperfeiçoar seus arsenais por meio da incorporação de novas tecnologias que aumentam sua velocidade, alcance e poder destrutivo, em uma verdadeira “proliferação tecnológica”.
Decisões unilaterais ou acordos bilaterais tiveram certo êxito em reduzir a espantosa quantidade de armas nucleares existente no auge da Guerra Fria. Apesar dessas reduções, ainda existem hoje aproximadamente 13.000 dessas armas. Atualmente, a maioria dos acordos de limitação entre os Estados Unidos e a Rússia perdeu a validade ou foram abandonados. O único ainda existente é o Novo START, concluído em 2010, unilateralmente suspenso pela Rússia. De fato, não há limitações acordadas em vigor para esses dois países ou para as demais potências nucleares. Os possuidores de armas atômicas consideram sua eliminação no máximo como um objetivo distante.
A Resolução 1887 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, adotada em 2008, reafirmou que a proliferação de armas de destruição em massa e seus vetores constitui uma ameaça à paz e segurança. Ninguém discorda dessa afirmação, mas a maioria concordaria que a própria existência dessas armas é o que na verdade representa a mais grave ameaça à paz e segurança.
Nenhuma arma nuclear foi jamais destruída ou desmantelada em virtude de tratado multilateral. Em contraste, o Tratado da Antártida (1961), o Tratado do espaço Exterior (1967) e o Tratado dos Fundos Marinhos (1972) aboliram essas armas onde elas não existem. Os países da América Latina e Caribe negociaram com êxito um tratado que proíbe tal armamento em seus territórios, uma iniciativa pioneira posteriormente emulada por 113 países e mais a Mongólia.
Na década de 1960 as duas principais potências negociaram entre si os principais dispositivos de um projeto de tratado e o apresentaram ao Comitê das Dezoito Nações sobre Desarmamento (ENDC). O texto final não obteve consenso no Comitê mas foi adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, tornando-se o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), que entrou em vigor em 1970. Durante os vinte anos seguintes muitos estados gradualmente flexibilizaram suas reservas iniciais ao instrumento e na altura do final dos anos 90 a esmagadora maioria havia se tornado parte. O TNP é considerado “a pedra angular do regime de não proliferação”. Somente quatro estados não aderiram; todos vieram a adquirir armas nucleares.
O TNP foi importante para impedir a aquisição de armamento atômico ou o desenvolvimento de explosivos nucleares por países que não as possuíam. Episódios de alegação de descumprimento das obrigações assumidas por parte de alguns desses países foram em grande parte resolvidos por meio de uma combinação de pressão política e econômica, inclusive sanções decididas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas e medidas diplomáticas.
No entanto, permanecem profundas diferenças de opinião entre os membros do TNP. Muitos países não nucleares percebem falta de interesse das potências armadas para agir decisivamente no sentido da eliminação de seus arsenais, em cumprimento do Artigo VI do instrumento. A insatisfação surgiu com veemência em diversos momentos, às vezes ameaçando comprometer a arquitetura de acordos de não proliferação e controle de armamentos. Seis dentre as dez Conferências de Exame da implementação do Tratado realizadas até agora terminaram sem adoção de um Documento Final de consenso, inclusive as duas útimas, em 2015 e 2022. Essa situação é altamente prejudicial para a autoridade e credibilidades do regime de não proliferação.
O Tratado Abrangente de Proibição de Ensaios Nucleares (CTBT), que baniu explosões nucleares experimentais em todos os ambientes, não se encontra ainda em vigor, mais de vinte anos após sua adoção pela Assembleia Geral, devido à falta das necessárias assinaturas e/ou ratificações por parte de oito dentre os 44 estados especificamente mencionados no Artigo 14. A contínua ausência de ação desses oito estados para o início ou conclusão dos requisitos internos de cada um desses países reduz a confiança na eficácia da proibição universal que o instrumento pretendeu instituir.
Outro fator de preocupação é a permanente incapacidade dos mecanismos multilaterais criados pela I Sessão Especial da Assembleia Geral sobre Desarmamento (SSOD I) de cumprir as responsabilidades que lhe foram confiadas. Desde meados dos anos 1990 não foi possível chegar a consensos significativos em questões de substância nos órgãos deliberativos multilaterais das Nações Unidas, isto é, a Comissão do Desarmamento (UNDC) e a Primeira Comissão da Assembleia Geral. Além disso, desde a mesma época a Conferência do Desarmamento em Genebra (CD) tem sido incapaz sequer de chegar a acordo sobre seu programa de trabalho.
O sistema de segurança internacional baseado na Carta das Nações Unidas e desenvolvido ao longo dos últimos 78 anos fracassou na prevenção de conflitos em muitas partes do mundo. Episódios de agressão e de rompimento da paz continuam a provocar mortes e destruição, especialmente em regiões em desenvolvimento, causando graves crises humanitárias e movimentos de população que alimentam reações xenofóbicas em países desenvolvidos. O Conselho de Segurança, primordialmente responsável pela manutenção da paz e segurança internacional, se mostra incapaz de agirem situações de especial interesse para qualquer de seus cinco membros permanentes, tornando esses países efetivamente imunes a qualquer medida com a qual não concordem. A composição do Conselho já não reflete a realidade geopolítica do mundo atual e as mudanças nas percepções de segurança que existiam em 1945. Já passou da hora de reformá-lo.
As tensões recorrentes entre as principais potências nucleares e entre rivais regionais são ameaças constantes à estabilidade e à manutenção da paz e segurança. Os países possuidores de armas nucleares adotam doutrinas militares que contempla o uso dessas armas nas circunstâncias que considerarem adequadas. Até recentemente, esses países costumavam argumentar que a existência de armas nucleares era responsável pela ausência de guerras na Europa desde o final da Segunda Guerra Mundial. Esse argumento não encontra respaldo diante da agressão russa contra a Ucrânia. Dois países europeus – um dos quais possui armas nucleares – estão em plena guerra e outros três estão envolvidos, além da OTAN, uma aliança militar nuclear. Ameaças de uso de armas atômicas têm sido feitas com maior ou menor estridência desde o início das hostilidades e não devem ser minimizadas. Se um conflito nuclear vier a eclodir, toda a estrutura de instrumentos internacionais de controle de armamentos, não proliferação e desarmamento poderá não sobreviver.
Um acontecimento importante desde a Décima Conferência de Exame do TNP em 2010 foi a promoção, por muitos países, da necessidade de uma séria reflexão sobre as consequências catastróficas e qualquer uso de armas nucleares. Três conferências internacionais, em 2013 e 2014, debateram a emergência humanitária e os riscos ligados ao armamento nuclear e chegaram à conclusão de que nenhuma nação ou grupo de nações seria capaz de enfrentar com eficácia o impacto humanitário de seu uso. Essas conferências concluíram que tais riscos são muito mais elevados e amplos do que anteriormente se acreditava e que eliminá-los deveria figurar no centro dos esforços globais de desarmamento e não proliferação.
Até o momento, o resultado mais palpável dessas iniciativas foi a negociação e adoção do Tratado de Proibição de Armas Nucleares (TPAN) que derivam diretamente do dispositivo contido no Artigo VI do TNP que solicita a cada estado parte buscar negociações sobre medidas efetivas relativas ao desarmamento nuclear. Isso foi exatamente o que se fez. O TPAN é o primeiro exemplo de um instrumento de Direito Internacional orientado para a proibição de armas nucleares em escala global. Além de proibir o uso ou ameaça de uso de tais armas, o Tratado proscreve seu desenvolvimento, produção, transferência, posse e armazenamento, assim como o estacionamento em terceiros países.
Estabelece, igualmente, obrigações de assistência a vítimas do uso ou de ensaios e medidas de reparação de danos ambientais em áreas contaminadas em consequência dessas atividades. É de suma importância que uma grande maioria de países não nucleares, idealmente a totalidade, demonstre claramente a rejeição a armas nucleares por meio da adesão ao TPAN. O Tratado já conta com 95 signatários, 68 dos quais já o ratificaram. Os procedimentos para a ratificação por parte do Brasil, que foi o primeiro país a assinar o TPAN, estão em curso no Congresso Nacional.
A erosão da estrutura internacional de instituições e acordos sobre controle e desarmamento nuclear mostra que tais arranjos são eficazes e duradouros enquanto correspondam ao interesse de todos os seus membros.
A confiança e a credibilidade são ingredientes essenciais para o êxito dos tratados entre nações ou grupos de nações. O prosseguimento da crise da arquitetura internacional no campo do desarmamento representa uma ameaça à segurança de todos os estados e deve ser revertida por meio de cooperação e negociação, levando em conta os legítimos interesses da comunidade internacional como um todo. A verdadeira segurança não pode basear-se na ameaça de destruição da civilização humana.
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