Série de três artigos:
Por Carlos Chagas
O dia é hoje, não ontem, como impuseram com medo da confusão com o dia da mentira. Não foi a 31 de março que os militares tomaram o poder, no longínquo 1964. Nesse dia saíram dos quartéis, mas só a primeiro de abril o presidente João Goulart deixou o palácio Laranjeiras, no Rio, passando por Brasília. Já na madrugada do dia 2 voou para Porto Alegre, de lá tomando o rumo do exílio no Uruguai.
A pergunta que se faz é como tudo pode acontecer sem derramamento de sangue nem respeito às instituições então vigentes. A resposta clássica é de que elas, as instituições, não valiam mais nada, postas em frangalhos pela conspiração que vinha de muito tempo, liderada pelas forças econômicas apavoradas com a marcha das reformas de base, prometidas por Jango. Dias antes ele havia nacionalizado as refinarias de petróleo e assinado decreto para desapropriar terras ao longo das rodovias e ferrovias federais, para efeito de reforma agrária. Prometia participação dos empregados no lucro das empresas, co-gestão e ampliação dos direitos trabalhistas implantados décadas antes por Getúlio Vargas.
Diversos grupos militares conspiravam alegando a iminência do comunismo ou, pelo menos, do estabelecimento de uma república sindicalista no Brasil. Empresários, na medida da amizade e do conhecimento com generais e coronéis, há muito financiavam a campanha de descrédito do governo, valendo-se dos principais meios de comunicação, financiados com recursos nacionais e americanos. Os egressos da Escola Superior de Guerra, o chamado grupo da Sorbonne”, com Cordeiro de Farias, Ademar de Queirós, Jurandir Mamede e,chefe de todos, Humberto de Alencar Castello Branco. Até meses antes, não articulavam a queda do governo Goulart, mas a formação de um esquema militar capaz de impedir um golpe dado de cima para baixo. Havia o grupo paulista, estabelecido ao redor do governador Ademar de Barros, com coronéis radicais dispostos a prender o comandante do II Exército, Amaury Kruel, se ele não aderisse à conspiração, compadre que era do presidente da República. No Rio, em torno do general Costa e Silva, funcionava uma espécie de sublegenda da sofisticada “Sorbonne”, militares mais radicais e dispostos ao rompimento da legalidade. O governador da Guanabara, Carlos Lacerda, atuava como peão da propaganda anti-Goulart, mas como não sabia guardar segredo, viu-se taticamente posto à margem de planos conspiratórios. Em Minas, depois da adesão do governador Magalhães Pinto, impulsionado pelo ex-ministro da Guerra, Odilio Denis, preparavam uma ação militar os generais Luís Carlos Guedes e Olimpio Mourão Filho, comandando também a Polícia Militar mineira.
Todos os grupos se uniram, mesmo implicitamente, depois do célebre comício na Central do Brasil,a 13 de março, sexta-feira, quando João Goulart discursara como uma espécie de presidente rebelde, prestes a atropelar a Constituição e o Congresso, infenso às reformas e dividido de alto a baixo. No dia 30, contrariando conselhos de correligionários tão díspares quanto Tancredo Neves, Santiago Dantas e Tenório Cavalcanti, Jango não cancelou sua ida ao Automóvel Clube, quando discursaria para sargentos do Exército, empenhados em quebrar os rígidos regulamentos da hierarquia castrense. Os da Marinha, junto com marinheiros e fuzileiros navais, já se haviam rebelado de verdade, constituindo um verdadeiro soviete na força. Anistiados em poucas horas, só deram pretexto à oficialidade naval para romper qualquer tipo de diálogo. O ministro da Marinha se demitira, o presidente não encontrou um só almirante do serviço ativo que aceitasse substituí-lo, fixando-se num velhinho reformado que integrava o Tribunal Marítimo e que ao tomar posse declarara um absurdo “com,o custa derrotar o capitalismo agonizante”.
Goulart foi e, como não podia deixar de ser, empolgou-se com os discursos revolucionários e até superou os demais oradores. Era a linguagem radical que os conspiradores queriam ouvir, como estímulo final ao golpe.
Faltava apenas a precipitação, de que se encarregou o general Mourão Filho, em Juiz de Fora. Ex-chefe do serviço secreto da Ação Integralista Brasileira, autor do falso Plano Cohen que serviu de pretexto para a decretação do Estado Novo, em 1937, tratava-se de um general de Divisão prestes a passar para a reserva. Comandava a Infantaria Divisionária e pouco depois da meia noite, já na madrugada do dia 31, botou a tropa na rua. Desceria a estrada União e Indústria, ligando a “Manchester Mineira” ao Rio, ainda que com tanques obsoletos e fraca artilharia. Esperava que outros contingentes militares se rebelassem em todo o país, mas não tinha certeza.
Pela manhã, Jango foi acordado no palácio Laranjeiras com a notícia de uma rebelião limitada a Minas. Em Belo Horizonte, o governador Magalhães Pinto ocupara postos de gasolina e mandara prender líderes sindicais, liberando um manifesto considerado insuficiente pelo general Mourão. Logo realizou-se uma reunião do presidente com alguns ministros, mas Jair Dantas Ribeiro, da Guerra, encontrava-se hospitalizado. Substituía-o chefe de gabinete, general Moraes Âncora. O ministro da Aeronáutica sugeriu que uma esquadrilha de caças levantasse vôo e paralisasse a tropa que descia a serra com bombas incendiárias. O presidente assustou-se: “vai morrer gente, inclusive moradores da região, não vai?” “Vai”. “Então não quero”. Acertou-se que uma tropa do Regimento Escola de Infantaria, aliás, muito maior e mais bem equipada, comandada pelo general Cunha Melo, deixaria Vila Militar e deteria os rebeldes ainda na fronteira entre os estados do Rio e de Minas. (Continua amanhã)