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Sem Boeing, Embraer teria cenário nublado

João Oliveira, Fernando Torres e Vanessa Adachi

Conforme a indústria global de aviação evolui para um cenário de competição ainda mais acirrada, a brasileira Embraer está diante de uma encruzilhada que definirá seu futuro. Uma união com a americana Boeing, em negociação, é vista como solução perfeita para enfrentar os desafios do mercado por especialistas e investidores.

Caso o governo faça valer o poder de veto que possui para barrar a compra do controle da Embraer, como tem reiterado, não será o fim do jogo para a fabricante, que tem demonstrado enorme capacidade de se reinventar ao longo da história. Seguir caminho solo exigiria da empresa o aprofundamento da estratégia de inovação e globalização, em curso desde 2006, apenas para se manter à tona, sem expectativa de grandes saltos.

A posição construída pela Embraer desde a sua privatização, em 1994, é um caso de sucesso e a companhia estreia este ano nova família de jatos regionais, segmento no qual já é a líder mundial, com mais de 50% de market share para os aviões de até 130 lugares. É nele que a fabricante sediada em São José dos Campos faz 57% de sua receita anual de US$ 6,1 bilhões.

"O segmento de aviões até 150 passageiros está em alta. Por isso, Boeing e Airbus sabem que precisam estar nele", diz Stephen Trimble, chefe da equipe americana da Flightglobal, firma de consultoria e conteúdo editorial com sede em Londres.

Segundo contas da Embraer e da sua principal concorrente, a Bombardier, esse segmento de jatos regionais vai movimentar US$ 300 bilhões até 2036 com demanda para 6,4 mil novas aeronaves. É uma receita média anual de US$ 15,8 bilhões em jogo.

A Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata), que representa as 275 maiores companhias de aviação do mundo, diz que a aviação regional vai ser um dos vetores da expansão do modal, que vai dobrar de tamanho para atender 7,8 bilhões de passageiros por ano até 2036. "As viagens estão se tornando mais acessíveis, com mais cidades entrando na malha aérea mundial", diz o vice-presidente da Iata para Américas, Peter Cerda. Nesse cenário, enquanto Europa e a América do Norte terão crescimento médio anual de 2,3% no tráfego aéreo até 2036, América Latina, Ásia Pacífico, Oriente Médio e África – mercados em que aviões menores são mais necessárias – verão avanço de 4% a 6%.

Outro fator que até agora favorecia a Embraer era a situação da Bombardier. A rival canadense lançou o programa de uma nova família de jatos, os CSeries, em 2005, mas sofreu com atrasos e estouros de orçamento. Só após aportes do governo federal canadense e da província de Quebec, que somaram cerca de US$ 4,5 bilhões, o programa atenuou desconfianças dos clientes.

Mas essa conjuntura começa a mudar. A Bombardier encontrou uma solução para dar vida longa ao CSeries, em outubro do ano passado, quando entregou o controle do programa para a Airbus. Juntas, Airbus e Bombardier pretendem ampliar as unidades de produção, inclusive nos Estados Unidos, no Alabama, com objetivo de ampliar acesso ao maior mercado da aviação mundial. Nas contas do analista Victor Mizusaki, do Bradesco BBI, a europeia e a canadense podem elevar o market share dos CSeries de 30% para 50%.

Na semana passada, o governo americano retirou uma taxação de 292% sobre o CSeries, o que escancarou o mercado dos EUA para o produto, impôs derrota à Boeing, que fizera a queixa que levou à taxação temporária, e aumentou a pressão sobre a Embraer.

Simultaneamente ao fortalecimento da Bombardier, a Embraer terá maior concorrência vinda do Oriente. Lá, a japonesa Mitsubishi está perto de entregar seu primeiro jato regional, enquanto a russa United Aircraft e a chinesa Comac finalizam o desenvolvimento de suas aeronaves. Além do acesso a recursos subsidiados dos dois governos, russos e chineses também juntaram forças na joint-venture Craic, para desenvolver turbinas e modelos menores de aviões.

Para o analista do J.P. Morgan Chase Carlos Louro, United Aircraft e Comac ainda precisam de track-record para ganhar mercado global, apresentam atrasos, mas estão presentes em dois dos mercados que mais vão crescer.

Outro fator que vai colocar a liderança da Embraer à prova é a entrada em operação da sua própria nova família de jatos E2. A primeira entrega será deve ser este ano, de um total de 567 unidades, entre pedidos firmes e opções dessa nova família de aviões comerciais.

Mas a Embraer ainda tem por entregar 155 jatos da versão anterior. A dificuldade, então, é virar a chave sem afetar o fluxo de caixa, convencendo clientes a comprar o modelo novo em vez do antigo.

A Embraer está numa situação melhor para negociar com a Boeing, em comparação com a vivida pela Bombardier ao selar o acordo com a Airbus, que sequer envolveu pagamento de caixa. Isso não significa que a empresa brasileira esteja em um mar de rosas.

A receitas da Embraer não crescem há cinco anos, oscilando em torno de US$ 6,1 bilhões anuais, e a carteira de pedidos encolheu 16% desde o pico em 2015, para US$ 18,8 bilhões. Quando se olha os números consolidados da Embraer, as margens e o retorno sobre ativos caíram entre 2014 e 2016, embora mostrem sinais de recuperação em 2017. Fato é que o fluxo de caixa gerado na operação tem sido insuficiente para custear o necessário plano de investimentos.

Como resultado, a Embraer, que sempre teve um caixa superior ao endividamento, passou a ter dívida líquida nos últimos trimestres, embora ainda reduzida. Em setembro ela era de US$ 723 milhões, equivalente a menos de uma vez seu Ebitda anual.

Mas é quando se abre o resultado por área de negócio que se entende tanto o interesse da Boeing nos jatos comerciais da Embraer como também que seria no mínimo arriscado, do ponto de vista financeiro, uma combinação de negócios que deixe para a companhia brasileira apenas os segmentos de defesa e aviação executiva.

Embora responda por algo próximo de 55% da receita nos últimos cinco anos, o desejado segmento de jatos regionais vem proporcionando margens e retornos elevados e consistentes, sendo responsável por 85% do lucro operacional desde 2013. As demais áreas não chegam a ser deficitárias, mas o segmento de aviação executiva já teve dias melhores e a área de defesa tem visto seu resultado oscilar entre o azul e o vermelho.

E é exatamente o segmento que vem sustentando o resultado da Embraer que está passando por mudança de cenário competitivo.

Projeções de analistas indicam que não existe perspectiva de crescimento para a Embraer no horizonte no curto prazo. Profissionais de J.P. Morgan, Bradesco BBI e BTG Pactual esperam que a Embraer vá reportar no balanço de 2017, a ser divulgado em 8 de março, algo entre US$ 5,7 bilhões a US$ 6 bilhões de receita, um pouco menos que os US$ 6,2 bilhões de 2016. A cifra volta a cair em 2018 – para a casa de US$ 5,2 bilhões a US$ 5,8 bilhões – e só em 2019 o faturamento volta a subir, chegando a US$ 6,4 bilhões nas contas otimistas.

O desempenho das ações da Embraer nos últimos dez anos conta a história de uma companhia que briga para se manter viva (ver gráfico), diante de uma Boeing que só fez avançar.

Por tudo isso, unir-se à Boeing neste momento tornaria o caminho adiante mais suave e promissor para a Embraer, na visão de especialistas do setor aéreo.

Nas contas do Bradesco BBI, a Boeing pode acrescentar 462 aviões à carteira de pedidos da Embraer. Esse é a frota de jatos regionais usados por 26 atuais clientes da americana e que serão compradas ou renovados. Um incremento representativo, considerando que a carteira de pedidos firmes para jatos comerciais da Embraer hoje soma 435 unidades, entre modelos antigos e novos. A Boeing também pode alavancar as áreas de aviação executiva da brasileira, que responde por 27% do faturamento da empresa, e de defesa, que entrega 15% da receita.

Boeing e Embraer já têm parcerias que geram sinergias fora da aviação comercial. Há, por exemplo, acordos por meio dos quais a americana fornece suporte técnico e comercial no projeto do KC-390, o cargueiro militar que começou a ser desenvolvido em 2006 e terá a primeira entrega este ano, para a Força Aérea Brasileira (FAB).

"As parcerias serão cada vez mais necessárias porque é a indústria aeronáutica demanda muito investimento e trabalha com um elevado grau de incerteza", diz o sócio e líder do setor de defesa espaço aéreo da PwC, Augusto Assunção. "Em um ambiente de maior concorrência, as redes de serviços e de vendas da Boeing podem fortalecer a Embraer nas próximas concorrências, porque a Boeing tem mais presença, mais balanço e maior acesso a capital", diz Trimble, da Flightglobal.

Segundo o sócio da Aerospace Brazil Certifications, Fulvio Delicato, para vender equipamentos militares aos Estados Unidos, a Embraer precisa de uma série de autorizações. "E os EUA são o maiores consumidores de equipamento militar mundial. Tendo a Boeing como parceira, essa comercialização ficará muito mais fácil", diz o engenheiro, que atua há três décadas nesse setor, tendo passado pela própria Embraer.

O analista do Citi Stephen Trent cita outro aspecto de complementariedade entre Boeing e Embraer: a área de desenvolvimento. A equipe de engenheiros da brasileira precisa de desafios, já que no momento não há novos projetos. São profissionais que podem ajudar a americana a desenvolver um novo avião de tamanho intermediário, entre o 737 e o 787, que a companhia tem discutido com clientes. "Existe risco real de a Embraer perder engenheiros por falta de motivação e também porque são profissionais bem remunerados, que custam à empresa", diz uma pessoa próxima à empresa.

O cenário para a união é tão favorável que Boeing e Embraer já estariam mais perto do acordo se não fosse pelo governo brasileiro. O presidente Michel Temer reiterou em entrevista ao Valor, publicada na segunda-feira, que o governo não quer a compra do controle da companhia. Hoje, 85% do capital da fabricante já estão nas mãos de investidores estrangeiros, de forma pulverizada. Com tal perfil societário, a empresa é comandada por executivos e conselheiros, cujas decisões são validadas pelos acionistas em assembleia.

Brasília sustenta que precisa resguardar interesses de Estado, em assuntos ligados à defesa, ao fomento da capacidade intelectual e à proteção ao emprego. "A questão de soberania é muito relativa. Hoje, se os Estados Unidos quiserem, podem interromper a produção do caça Super Tucano, por exemplo. Basta suspender a entrega de componentes de fabricantes americanos", diz um executivo com conhecimento dessa área.

"A venda para a Boeing é um caminho às escuras. Essa empresa é protecionista e não hesitará em fechar as unidades do Brasil ao menor sinal de crise nos EUA", afirma o vice-presidente do Sindicato de São José dos Campos, Herbert Claros, onde estão cerca de 13 mil dos 19 mil empregados da companhia. Segundo ele, a capacidade de promover no Brasil inovação e desenvolvimento será afetada.

O Valor apurou que a Boeing tem sinalizado ao governo que pode dar as vantagens competitivas à Embraer sem colocar em risco questões de segurança e defesa. A empresa de Seattle promete preservar presença e operação no Brasil – com a manutenção de gestores, empregos e produção -, bem como marca e cultura da companhia. Segundo uma pessoa com conhecimento do assunto, tais garantias poderiam ser dadas por determinado prazo, em contrato.

"Na lógica de um duopólio de mercado, a Boeing não pode deixar sem resposta um movimento que dá à Airbus acesso ao mercado de aeronaves menores", destaca Trimble, da Flightglobal.

Uma alternativa, diz, é a Boeing desenvolver seus próprios jatos regionais. A empresa já produziu o 717, com 100 assentos, que herdou da McDonnell Douglas Corporation, mas que parou de produzir o modelo em 2006. A americana produz hoje 737-7, a partir de 130 assentos, mas que está sem novos grandes pedidos faz anos.

Embora essa alternativa de carreira solo custe quase meia década, a Boeing poderia a partir de 2026 engolir 30% do mercado de jatos regionais, diz Mizusaki, do Bradesco BBI. Junto com o crescimento da Bombardier com a Airbus, a Embraer correria o risco de ver a fatia no mercado de jatos comerciais pequenos ceder de 50% para 35%.

Por isso, se permanecer sozinha, a Embraer terá que encorpar a própria rede global de vendas, aumentar a receita da recém-criada área de manutenção, além de estrear em novos segmentos. O movimento de globalização não seria novidade, para quem já tem fábricas nos EUA e Portugal.

Sobre novos produtos, uma hipótese é a volta da fabricação de um turboélice, como já fez entre 1983 e 2001. A Embraer tem ainda em estudos preliminares duas opções. Uma é entrar no segmento de jatos executivos de ultra longo alcance, dominado por Dassault, Gulfstream e Bombardier. Esse nicho representa menos de 5% das entregas todos os anos, mas apresenta margens de dois dígitos.

Outra opção seria Embraer ingressar no segmento de jatos comerciais de médio porte, com mais de 150 assentos. "Isso já foi avaliado no passado e rejeitado internamente, pois seria loucura competir diretamente com Boeing e Airbus", comenta um executivo que prefere não ser identificado.

Essas diferentes opções para Embraer têm um ponto em comum: a necessidade de acesso ampliado a fontes de capital. A companhia separa anualmente cerca de 10% dos R$ 21,5 bilhões que fatura para pesquisa e desenvolvimento. E o fluxo de caixa estará sob pressão por conta da transição de produtos de jatos comerciais.

Embora seguir sozinha seja uma opção mais desafiadora para a Embraer, a própria expansão da demanda pelo modal aéreo é suficiente para manter a fabricante brasileira competitiva. "A Embraer não depende da Boeing para sobreviver", diz Ozires Silva, ex-presidente da companhia, destacando a capacidade de inovação da empresa. "Sem dúvida a Embraer sobrevive sem a Boeing, mas a tendência é que se mantenha na linha do faturamento de US$ 6 bilhões ao ano e, com o passar do tempo, perca relevância relativa na indústria", resume um ex-executivo da companhia.

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