PhD, Coordenador de Governança Internacional e Estudos Estratégicos da DINTE/IPEA
PhD, Professor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA)
Marcos José Barbieri Ferreira
PhD, Professor da FCA-UNICAMP e coordenador do Laboratório de Estudos das Indústrias Aeroespaciais e de Defesa (LabA&D), Coordenador do projeto Economia da Defesa do Pró-defesa
Nota – Os autores do texto atestam que a opinião aqui expressa não reflete necessariamente a posição das instituições às quais estão vinculados
É difícil superestimar a importância da EMBRAER para o Brasil. Sozinha, a empresa é responsável direta por 5% de todo nosso esforço tecnológico, sendo a única brasileira em um setor de alta intensidade tecnológica a figurar no ranking das líderes mundiais em P&D (R&D Scoreboard) desde sua primeira edição.
Chama atenção que de fato, mesmo em um comparativo mundial, a intensidade tecnológica da EMBRAER é maior que a de grande parte de outros grupos do setor de “Aeroespacial e Defesa”. Assim, não surpreende que em todas edições do Valor Inovação, que ranqueia empresas segundo vários atributos de empreendedorismo e ativismo tecnológico, foi a EMBRAER a escolhida.
No aspecto estratégico, a Embraer é a mais importante empresa de defesa do Brasil, sendo a única latino americana a figurar no ranking das 100 maiores empresas bélicas do mundo (Stockholm International Peace Research Institute – SIPRI). A EMBRAER vem desenvolvendo aeronaves militares cada vez mais robustas e sofisticadas, como o cargueiro KC-390 e o avião de caça Gripen NG, este último em parceira com os suecos.
A empresa também diversificou sua atuação na área de defesa sendo responsável por uma parcela significativa dos programas estratégicos, como o monitoramento de fronteiras, a fabricação de radares e a integração de satélites, além de participar do desenvolvimento do reator nuclear do PRSOUB e do consórcio que irá fornecer as novas fragatas para Marinha do Brasil.
Essa posição evidentemente não foi alcançada da noite para o dia. A EMBRAER resulta de um caso de sucesso quase único no Brasil em que se parte da construção de complexas capacidade científicas, depois tecnológicas e daí empresariais a partir de um bem elaborado e bem conduzido planejamento governamental iniciado na década de 1950 com a criação do CTA e seus institutos de ensino (ITA) e P&D (IPD).
Vários outros países além do Brasil, como Japão, Coreia do Sul, Rússia e Índia, conscientes da decisiva importância seja para o dinamismo econômico, seja para a defesa nacional, dedicaram seus melhores esforços para disporem de uma empresa aeronáutica capaz de operar competitivamente tanto no mercado civil quanto no militar, ou seja, alcançar as sinergias decorrentes da atuação dual nestes dois segmentos de alta tecnologia. Apenas o Brasil, os Estados Unidos, a França, a Alemanha e o Reino Unido conseguiram.
Infelizmente, e em particular nos setores realmente estratégicos, a luta competitiva não é restrita às empresas. De forma especialmente dramática no setor aeroespacial, a concorrência é dada pelas capacidades produtivas, científicas e tecnológicas e na forma como os estados nacionais desenvolvem seus “sistemas de inovação” e não apenas as empresas que dele fazem parte, que são, por assim dizer, sua face para o mundo.
Apesar de indubitavelmente a Embraer ser essencialmente um caso de política pública bem-sucedida, o porte do sistema de inovação brasileiro passou a ser um limite para a capacidade da empresa se manter na invejável posição de terceira maior fabricante global de aeronaves.
Em suma, é salutar verificar que as capacidades competitivas nesse enfoque ampliado são fruto da organização de agentes produtivos e dos estados nacionais. Nos anos 90, os principais grupos aeroespaciais europeus se uniram sob o grande guarda-chuva do AIRBUS Group, formando uma gigante capaz de confrontar a BOEING, coordenar uma extensa cadeia de fornecedores de vários países (e uma rede de instituições de C&T equivalentes) e dispor de uma rede de distribuição e manutenção de escala global; tudo sob a tutela dos respectivos estados nacionais, que utilizaram suas políticas públicas para promover e coordenar as atividades produtivas e tecnológicas da empresa no continente.
Apenas a BOEING estava posicionada para enfrentar o desafio em toda sua amplitude. De fato, o gradual processo de consolidação da empresa – que vem desde os anos 1960, destacando-se a aquisição da McDonell Douglas, em 1996 – que sempre contou om o apoio do governo estadunidense, mostra o recrudescimento da necessidade de escala, capacidade financeira, de C&T e de redes de distribuição e serviços ao consumidor. Ainda que com atraso, em 2008 a China também avançou nesse processo de consolidação da indústria aeronáutica com a constituição da COMAC, estatal resultante da fusão das principais empresas aeronáuticas do país.
Apenas a EMBRAER e a BOMBARDIER sobreviveram a essa reorganização do mercado, sendo inclusive capazes de exibir taxas de crescimento superiores às do duopólio Boeing-Airbus por algum tempo. No entanto, o problema da menor escala, sobretudo pelas desvantagens que acarreta para a gestão de redes globalizadas de fornecedores e de distribuição e manutenção das aeronaves persistiu.
Nesse embate competitivo, uma parte da empresa canadense BOMBARDIER (aviação comercial, especialmente os programas C-Series) foi adquirida em 2017 pela Airbus. Contudo, foi estabelecida uma joint venture com a participação do governo de Québec, visando a manutenção dos empregos e tecnologia no país. No âmbito do Brasil, esses movimentos sinalizaram a pressão pela busca de escala e novas parcerias, e é a partir daí que se configura a aproximação entre a Embraer e a Boeing no ano de 2017.
Há aspectos positivos e negativos no negócio com a BOEING. Muitos analistas qualificados destacam as sinergias entre os grupos, a possibilidade de a empresa brasileira passar a ter acesso à extensa rede de fornecedores liderada pela BOEING e a força da marca desta. Sem dúvida são aspectos relevantes.
Por outro lado, a perda do seu principal braço civil – justamente aquele no qual era melhor sucedida, respondendo nos últimos anos por cerca de metade das receitas e quase 90% dos lucros – afastaria a Embraer do que talvez era seu maior trunfo: a bem enraizada dualidade da sua atuação em mercados distintos. A EMBRAER restante seria menor e provavelmente mais dependente de compras e de financiamento público, de maneira que precisaria de ainda mais apoio estatal para desenvolver novos projetos, financiar suas atividades, adquirir lotes piloto e para promover a venda de seus produtos no mercado externo.
Virou um clichê a afirmação de que quanto mais intensas são as crises, maiores são as oportunidades geradas. Sabendo ser falsa sua origem no extremo oriente, especulamos se na verdade não se trata de uma reformulação livre do conceito de “destruição criativa” de Schumpeter, grande referência no estudo da inovação. Não há dúvida que a crise atual – que não foi causada por uma onda de inovação radicais, como as que Schumpeter e seus seguidores analisaram – traz grandes oportunidades para algumas empresas e para alguns países.
Embora, à primeira vista, a EMBRAER apareça distante dessa situação (de fato, o abandono da Boeing em meio à ameaça de quebra de inúmeras companhias aéreas parece mais o oposto disso), não se pode desconsiderar que a médio prazo tenhamos uma significativa reordenação do mercado que o duopólio BOEING-AIRBUS ajudaram a consolidar. Desta maneira, a manutenção da Embraer nesse ambiente competitivo, bem como sua profunda relação de sucesso com o desenvolvimento de tecnologia para as Forças Armadas, é um ativo que não se pode perder.
Nesse cenário, agravado pela crise da pandemia do corona vírus, entendemos que é urgente e de máxima importância que a empresa, em coordenação com os governos federal e paulista, bem como a FAB, o BNDES (seu maior acionista nacional), FINEP e os ministérios da Economia e da C,T&I refaça seus planos de negócios a partir de um conjunto de cenários plausíveis. O próprio movimento do governo americano em ajuda à BOEING (https://www.cnbc.com/2020/03/17/coronavirus-boeing-seeks-60-billion-in-aid-for-aerospace-sector.html) pari passu a clamores para uma resposta coordenada para salvar a AIRBUS, também em situação preocupante (Ver matérias Financial Times e Reuters) evidencia que o nível estratégico das empresas da indústria aeroespacial deve ser considerado em toda a sua extensão.
Se de um lado a situação financeira do Estado brasileiro não é exatamente invejável, por outro a situação de crise faz aceitáveis e mesmo recomendáveis – o mercado entenderá e no limite até mesmo apreciará – ações bem estruturadas para superá-la. Ademais, e talvez de máxima importância, qualquer nova negociação dos ativos da Embraer seria feita na bacia das almas nesse momento. Caso se perceba daqui a alguns anos que a situação se agravou, nada impede que a empresa e os detentores de sua golden share voltem a negociar uma joint venture – ou mesmo uma alienação parcial – com outras empresas.
Além disso, essas e outras alternativas estarão mais claras. O que certamente não é uma alternativa plausível é abandonar a galinha dos ovos de ouro – ainda mais em um período que novos e importantes programas aeronáuticos da empresa estão entrando no mercado – ou vender a empresa em um cenário em que seus ativos foram duramente atingidos por ocorrências, como a crise da Covid-19 e o abandono da Boeing, totalmente fora de seu controle.
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