TNP: PROMESSA E REALIDADE
SERGIO DUARTE
Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de desarmamento. Presidente da Conferência de Exame do TNP em 2005. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais
“Como é possível esperar que nós – os países não possuidores de armas
nucleares – aceitemos uma interminável obrigação de permanecermos não nucleares enquanto os Estados nucleares se entregam a uma interminável escalada nuclear?”
Alva Myrdal, Chefe da Delegação da Suécia no ENDC.
(Registro literal da 363ª. reunião da Conferência das 18 nações sobre Desarmamento, fevereiro de 1968, ENDC/PV.363, pp 4-12).
“Meu país acredita que a viabilidade permanente deste tratado dependerá em grande parte de nosso êxito em novas negociações contempladas no Artigo VI. No espírito do Artigo VI, meu governo buscará novas negociações de desarmamento com zelo e esperança redobrados, e com brevidade.”
(Arthur Goldberg, Embaixador dos Estados Unidos ante as Nações
Unidas, 26 de abril de 1968). Citado por Jonathan Hunt, Into the Bargain, https://www.chinhnghia.com/, pp. 388-389).
As duas citações acima provêm de comentários feitos por ocasião da redação e adoção do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), há mais de cinquenta anos. Durante os primeiros três meses de 1968 o Comitê das Dezoito Nações sobre Desarmamento (ENDC na sigla em inglês) travou intenso debate sobre um projeto de tratado que se destinava a impedir a disseminação de armas nucleares, apresentado conjuntamente pelas delegações dos Estados Unidos e da União Soviética. Nos dois anos anteriores as duas superpotências se haviam engajado na negociação entre si das características do futuro instrumento, principalmente os artigos I e II. Esses dispositivos continham as principais proibições que objetivavam evitar a proliferação de armas atômicas e ao mesmo tempo preservar e legitimar o status quo nuclear da época. Os estados que haviam detonado um engenho nuclear explosivo até a data de 1 de janeiro de 1967 se obrigariam por esse meio a não transferir armas ou outros engenhos nucleares explosivos a qualquer recebedor, assim como a não assistir, estimular ou induzir países não nucleares a fabricar ou de outro modo adquirir tais armas ou engenhos explosivos. Por sua vez, os não possuidores renunciariam a receber a transferência de armas ou engenhos explosivos nucleares ou o controle sobre tais armas ou explosivos, assim como à fabricação ou outras formas de sua aquisição.
O caráter inerentemente discriminatório desse arranjo explica em grande parte a recusa de diversos estados membros do ENDC a concordar com o texto final do projeto tal como compilado e apresentado por seus dois co-presidentes – os representantes da União Soviética e dos Estados Unidos. Os países não nucleares argumentaram, inter alia, que o texto não guardava consonância com a resolução 2028 (XX) da Assembleia Geral das Nações Unidas[1], que estabelecera os princípios nos quais deveria basear-se um futuro tratado de não proliferação. Entre tais princípios estava o equilíbrio de direitos e obrigações entre estados nucleares e não nucleares e a necessidade de que o instrumento constituísse um passo no sentido do desarmamento nuclear. Coerentemente, aqueles países redarguiram que o tratadodeveria conter dispositivos claros e juridicamente vinculantes sobre a eliminação dos arsenais atômicos.
Muitas das emendas propostas nos debates objetivavam fortalecer o compromisso dos países nucleares para com medidas eficazes de desarmamento. A redação final da proposta apresentada pelos dois co-presidentes continha, entre outros pontos controvertidos, a redação que se tornou o artigo VI do TNP – um tortuoso comprometimento de todas as partes aentabular, de boa fé, negociações sobre medidas efetivas para a cessação em data próxima da corrida armamentista nuclear e para o desarmamento nuclear. Na ausência de consenso, os co-presidentes enviaram o texto sob sua própria autoridade à Assembleia Geral, “em nome do Comitê”.[2]
Cinquenta anos já se passaram e tais negociações jamais ocorreram. Todas as tentativas de iniciar negociações sobre medidas concretas de desarmamento nos órgãos multilaterais foram frustradas.
A Carta das Nações Unidas já havia dividido o mundo em duas categorias de países; cinco receberam assentos permanentes e direito de veto no Conselho de Segurança enquanto as demais não possuíam o mesmo status. O TNP reforçou essa estrutura hierárquica ao designar os mesmos cinco países como “estados nucleares”.[3]Em 1995 uma Conferência de Exame e Extensão do TNP chegou à conclusão de que existia uma maioria em favor de sua extensão indefinida. Consequentemente, a existência dessas duas categorias estanques foi também estendida indefinidamente.[4]
Considerando-se livres de qualquer entrave sobre o tamanho e composição de suas forças nucleares, os cinco possuidores reconhecidos trataram de aumentar sua própria capacidade nuclear bélica. Quatro outros estados que não aderiram ao tratado ou mais tarde o abandonaram igualmente desenvolveram armamento atômico. No auge da Guerra Fria o total estimado de armas nucleares era de 70.000. Na segunda década do século 21 os dois estados mais fortemente armados – os Estados Unidos e a União Soviética – concordaram em reduzir significativamente suas forças nucleares por meio de um acordo bilateral negociado fora do âmbito do TNP.[5] Esse acordo foi recentemente prorrogado pelos próximos cinco anos e espera-se que venha a facilitar novas reduções no futuro. Acredita-se que exista hoje no mundo um total de cerca de 14.000 armas nucleares, aproximadamente 95% das quais pertencem àqueles dois estados. Ao longo dos anos alguns países nucleares adotaram limitações voluntárias sobre suas forças nucleares. No entanto, há menos de duas semanas atrás, um desses países, o Reino Unido, reverteu sua postura ao decidir aumentar de 180 para 160 o limite das ogivas atômicas colocadas em mísseis baseados em submarinos.
Alegando a necessidade de contrapor-se a atividades de adversários percebidos ou potenciais, todos os atuais nove possuidores de armas nucleares estão há algum tempo empenhados em “modernizar” seus arsenais. Isso significa a implementação de avanços tecnológicos com o objetivo de aumentar a velocidade, precisão e poder destruidor de seu armamento. Alguns deles vêm aumentando o número de suas armas nucleares e acrescentado novas capacidades correlatas.
Missil balístico intercontinental norte coreano
Há uma preocupação cada vez maior com a atual tendência à deterioração dos acordos bilaterais e regionais no campo do controle de armamentos, assim como com ao abandono de compromissos políticos obtidos durante várias décadas desde o advento da arma nuclear. Um novo ciclo da corrida armamentista parece prestes a ocorrer. A credibilidade do próprio TNP, amplamente considerado como “a pedra angular do regime de não proliferação nuclear” tem sofrido consideravelmente com os efeitos dessa situação.
Um sentimento crescente de frustração, aliado ao incremento da percepção dos efeitos catastróficos de detonações nucleares levou um grupo de países não nucleares, inclusive o Brasil, a promover em 2015 a negociação de um tratado de proibição de armas nucleares (TPAN), que entrou em vigor em 22 de janeiro de 2021. O tratado abre um novo caminho em direção a medidas de desarmamento nuclear, sem prejuízo das obrigações contidas no TNP. Nosso país foi o primeiro a assiná-lo e o instrumento se encontra pendente de ratificação pelo Congresso Nacional. O advento desse tratado, porém, foi recebido com hostilidade pelos países nucleares e alguns de seus aliados, que consideram a iniciativa “prematura” e até mesmo “contraproducente”. Essa retórica aparentemente contribuiu para a indiferença geral com que o novo tratado foi recebido pela maior parte da grande imprensa.
Os estados-parte do TNP deverão reunir-se em agosto de 2021 para a décima Conferência de Exame do tratado. O TNP está em vigor há cinquenta anos e já se passaram vinte e cinco desde sua extensão indefinida. Rivalidade, competição e suspeita continuam a perturbar o relacionamento entre as principais potências e a proporcionar pretextos para o prosseguimento da corrida armamentista e para a postergação de ações significativas para a negociação de medidas eficazes de desarmamento. Por sua vez, essa situação contribui para maior deterioração das relações internacionais e para o insidioso déficit de credibilidade dos atuais instrumentos e compromissos políticos no campo do controle de armamentos.
Em sua abrangente e detalhada descrição e análise do processo que levou à decisão sobre a extensão indefinida do TNP, o embaixador Jayantha Dhanapala, presidente da Conferência de Exame e Extensão em 1995, observou: “Em última análise, a melhor garantia contra a complacência poderá ser encontrada no nível de confiança entre os estados-parte na legitimidade e equanimidade básicas do tratado – e sobre isso tenho certa preocupação, porque existe uma persistente e ampla percepção entre muitos desses estados de que a barganha fundamental do TNP é em fim de contas realmente discriminatória, como muitos de seus críticos asseveram há tempos. Portanto, como poderão os estados-parte impedir que a “barganha” pela qual arduamente se empenharam se deteriore e se transforme em uma trapaça?”[6]
Essa pergunta permanece pertinente ao longo dos anos, e a recente decisão britânica realça sua atualidade. Ao TNP pode-se creditar em grande parte o fato de que relativamente poucos países além dos cinco por ele reconhecidos resolveram dotar-se de armas nucleares. No entanto, a persistente falta de implementação das obrigações de desarmamento nele contidas alimenta a desconfiança e a insatisfação. Essa falha contribui para um preocupante decréscimo da confiança na capacidade do tratado de atender aos desafios de segurança dos tempos atuais e especialmente à ameaça representada pela própria existência de armas nucleares. A fim de evitar um declínio mais acentuado de sua credibilidade a comunidade internacional precisa agir com decisão e clarividência em um esforço coletivo de desarmamento nuclear, que exige o completo cumprimento do artigo VI em observância das promessas feitas para assegurar a adoção e extensão do tratado. A aquisição futura de até mesmo uma capacidade nuclear incipiente por parte de novos países sem dúvida constitui uma possibilidade perigosa que precisa ser conjurada; no entanto, a existência indefinida e uma renovada expansão dos arsenais nucleares capazes de obliterar a civilização humana continuam a ser a mais óbvia e presente ameaça, além de uma eventualidade assustadora.
A humanidade precisar impedir que o Relógio do Juízo Final marque a meia-noite[7]. A única maneira de chegar a esse objetivo longamente almejado é eliminar as armas nucleares de uma vez por todas, realizando assim a promessa do TNP.
[1] A Resolução 2028(XX) foi adotada em 19 de novembro de 1965 por 93 votos a favor, nenhum contra e cinco abstenções. Dentre os possuidores de armas nucleares reconhecidos pelo TNP os Estados Unidos, URSS, China e Reino Unido votaram a favor e a França se absteve.
[2] A/7072 e rev. 1.
[3] https://www.un.org/disarmament/wmd/nuclear/npt1995/. O saudoso Embaixador João Augusto de Araújo Castro , ex-minisgro das Relações Exteriores do Brasil, observou que a composição do CSNU e a designação dos mesmos cinco estados como estados nucleares” pelo TNP representavam o “congelamento do poder mundial”. Araújo Castro já não estava entre nós em 1995, mas provavelmente acrescentaria que a extensão indefinida do TNP teria o efeito de tornar perpétuo o congelamento.
[5] O Tratado Novo START, de 2009, entre os EUA e a Rússia estabeleceu limites sobre ogivas e vetores. Atualmente os EUA possuem aproximadamente 5.800 ogivas e a Rússia 6.350.
[6] Jayantha Dhanapala: Multilateral Diplomacy and the NPT – An Insider’s Account, p. 116
[7] O Bulletin of Atomic Scientists instituiu o “Relógio do Juízo Final”, no qual a meia-noite marca o momento da destruição total do mundo em uma hecatombe nuclear. O Relógio está atualmente marcando 100 segundos para a meia-noite.