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RISCOS NUCLEARES: Redução ou Eliminação?

 

SERGIO DUARTE

Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais

 

Escapamos da Guerra Fria sem um holocausto nuclear devido a uma combinação de competência, sorte e intervenção  divina – provavelmente esta última em maior proporção."

General Lee Butler, ex-Comandante das Forças Nucleares dos EUA.

Em uma declaração conjunta no dia 16 de junho, os presidentes Biden e Putin reafirmaram o princípio de que “uma guerra nuclear não poderá ter vencedores e jamais deve ocorrer”  e anunciaram a intenção da Rússia e Estados Unidos de iniciar em breve um diálogo estratégico integrado fim de lançar as bases para “medidas futuras de controle de armamentos e redução dos riscos”.

Depois de um longo período de hostilidade e desconfiança entre as duas potências, a declaração é um sinal positivo que reflete a preocupação do restante da humanidade com a ameaça existencial das armas nucleares, embora não indique o objetivo de eliminar completamente as armas nucleares.

Poucos dias antes, foi publicado um interessante estudo sobre redução do risco de uso de armas nucleares, intitulado “Politicas nucleares dos Estados Unidos para um mundo mais seguro” , cujas propostas merecem consideração e estímulo. O documento, preparado pela instituição não governamental norte-americana ”Nuclear Threat Initiative” (NTI), oferece oportunas sugestões para a redução desses riscos, inclusive a de que os cinco países possuidores de armas nucleares reconhecidos pelo Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP)  reafirmem também o princípio retomado por Biden e Putin.

A declaração de ambos deveria ajudar a convencer os outros três a juntar-se a eles em um pronunciamento semelhante, talvez sob a égide do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Outra ideia que poderia ser explorada é a de estabelecer um grupo de trabalho permanente entre os cinco NWS (Nuclear Weapons States), dedicado ao debate de posturas e doutrinas nucleares e publicação de seus respectivos estoques de ogivas, comprometendo-se a não exceder quantidades especificadas.  

 

O documento do NTI começa assinalando que a maioria dos norte-americanos felizmente não permanecem acordados durante a noite temendo uma guerra nuclear, porém em seguida reconhece a “inquietante realidade” de que os riscos nucleares vêm crescendo há anos e que a possibilidade de uso de armas nucleares é maior hoje do que em qualquer momento desde a crise dos mísseis de Cuba, em 1962.

Essa inquietação é compartilhada pelo restante do mundo, que tem consciência clara das consequências catastróficas de uma conflagração nuclear e tampouco pode dormir tranquilamente enquanto existirem armas nucleares. Todas as nações devem esforçar-se para reduzir, e finalmente impedir, um enfrentamento nuclear capaz de levar à extinção da vida e civilização humanas no planeta, responsabilidade que recai, especialmente, sobre os nove países possuidores dessas armas (em seguida referidos como NWS e os não possuidores como NNWS).

O estudo do NTI não deixa dúvida sobre o atual estado de incerteza e insegurança em que se encontra o mundo, ao afirmar que evitar a “ameaça cataclísmica” do uso de armas nucleares deve ter prioridade máxima em vista das crescentes tensões entre os países possuidores de armas nucleares e acrescenta a esse fator preocupante a erosão da estrutura de acordos sobre controle de armamentos ocorrida nas últimas décadas e o desenvolvimento de novas tecnologias para uso bélico.

A fim de enfrentar tais desafios, a NTI com razão considera essencial a liderança norte-americana e a renovação do compromisso com a diplomacia e do engajamento – isto é, o abandono de atitudes negativas e isolacionistas – e propõe mudanças nas políticas e posturas dos Estados Unidos para a redução do papel das armas nucleares: maior cooperação com a Rússia em temas estratégicos, aprofundamento do diálogo com a China sobre assuntos nucleares e novo comprometimento com a busca de soluções multilaterais para o fortalecimento do regime global de não proliferação e redução de riscos nucleares. Se adotadas, essas propostas exigiriam uma guinada de 180 graus na mentalidade e posturas que têm prevalecido no relacionamento entre as principais potências ao longo das últimas décadas.

Os NWS, porém, não parecem dispostos a abrir mão de seu armamento nuclear. Com efeito, o estudo da NTI assinala que “no mundo de hoje, está entendido que os Estados Unidos continuarão a possuir e dispor armas nucleares para sua segurança e de seus aliados enquanto isso for necessário”. Conforme evidenciado por suas atitudes e pronunciamentos, os outros oito possuidores têm idênticas intenções. Deve0se observar que a maioria esmagadora da comunidade internacional, contudo, não compartilha desse entendimento. 

A Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares (ICAN) revelou recentemente que aqueles nove países despenderam 72,6 bilhões de dólares em armas nucleares em 2020, isto é, 1,4 bilhão a mais do que no ano anterior . Esse total compreende os gastos dos diferentes ministérios e agências governamentais com a produção, manutenção e gerenciamento das armas atômicas e os contratos com empresas privadas que produzem esse armamento, que montam a US27.7 bilhões. Ainda segundo a ICAN, muitas dessas empresas gastaram entre 5 e 10 milhões de dólares em contribuições a instituições de pesquisa sobre temas relacionados com armas e políticas nucleares em diversos países.

As principais medidas para redução do risco de uso de armas nucleares sugeridas pela NTI para adoção imediata por parte do governo dos Estados Unidos são as seguintes:

 

1 – Fortalecimento dos sistemas de comando e controle e de alarme contra ataques cibernéticos e a identificação de passos para aumentar o tempo disponível aos líderes em tempo de crise para reduzir o risco de erros de avaliação capazes de levar a um conflito nucelar por inadvertência ou incompetência. Outros NWS poderiam ser estimulados a tomar medidas semelhantes;

2 –  Adoção de nova política declaratória que limite os cenários nos quais os EUA poderiam cogitar o uso de armas nucleares, inclusive uma declaração de que o “único objetivo” desse armamento é o de dissuadir ataque nuclear contra os Estados Unidos e seus aliados e parceiros;

3 – Em prazo curto, Estados Unidos e Rússia poderiam indicar compromissos recíprocos em direção a “modestas” reduções de suas ogivas abaixo dos limites do tratado Novo START e iniciar imediatamente negociações para reduções mais ambiciosas;

4 –  Restabelecimento de uma proibição verificável de mísseis de alcance intermediário a oeste dos montes Urais;

5 – Estímulo a atitudes que favoreçam a estabilidade das forças estratégicas e não estratégicas na Europa;

6 – Ampliação o âmbito do diálogo bilateral com a Rússia, inclusive sobre defesas antimísseis;

7 – Mantido o processo bilateral descrito acima, busca de um maior engajamento da China em temas estratégicos;

8 – Ainda que acordos formais trilaterais não pareçam prováveis em prazo breve, desenvolvimento de um diálogo constante com a China sobre temas estratégicos com o objetivo de reduzir o risco de uso de armas nucleares, conter uma corrida armamentista potencial e proporcionar maior transparência e fortalecimento da confiança.

9 – Ño contexto do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), intensificação dos esforços no sentido da não proliferação e desarmamento e colaboração entre os cinco NWS para evitar o uso de armas nucleares, aumento da transparência sobre os arsenais, reafirmação da moratória sobre ensaios nucleares e declaração de uma moratória sobre a produção de matéria físsil para uso em armas nucleares e outros engenhos explosivos.

Todas as sugestões e propósitos relacionados acima são sem dúvida úteis para reduzir – embora não suficientes para impedir – o uso de armas nucleares, pois pressupõem a permanência indefinida dos arsenais, admitem sua possível ampliação qualitativa e quantitativa. Portanto, não conduzem à eliminação completa da ameaça existencial que essas armas representam. Para que sejam capazes de levar a resultados concretos no sentido do desarmamento nuclear, os quais exigiriam passos e providências complementares, tais como:

 

a) Dedicação ativa ao cumprimento da obrigação de desarmamento nuclear contida no Artigo VI do TNP, inclusive no âmbito do chamado “P-5 process”, no âmbito do qual os cinco NWS reconhecidos por esse tratado vêm desde há alguns anos mantendo diálogos regulares, e comunicação sobre os respectivos resultados;

b)  Ratificação do Tratado Abrangente de Proibição de Ensaios Nucleares (CTBT) pelos países mencionados em seu Anexo II que ainda não o fizeram, pois as moratórias existentes sobre os ensaios com explosivos nucleares são fruto de declarações unilaterais feitas pela maioria dos NWS, e por isso podem ser revogadas ou alteradas a qualquer momento. Um passo construtivo seria transformá-las em compromisso conjunto e juridicamente vinculante;

c)  Prosseguimento das negociações bilaterais entre USA e Rússia para redução dos arsenais existentes, conforme anunciado em 16 de junho pelos dois presidentes. A eventual inclusão da China e posteriormente outros NWS nesse processo seria de todo desejável. Essas negociações, no entanto, não devem ser vistas como um fim em si mesmas, e sim servir como um caminho para levar à eliminação das armas nucleares de todos os possuidores.

 

A NTI chama a atenção para a necessidade de estabelecimento de uma estrutura institucional dedicada para o diálogo regular entre os Estados Unidos e China em busca de maior transparência e medidas de fortalecimento da confiança mútua, a fim de assegurar a manutenção da estabilidade estratégica e evitar mal-entendidos e suspeitas sobre as intenções de ambas as partes. Providência semelhante poderia ser adotada por Washington e Moscou e por Nova Delhi e Islamabad.

É interessante assinalar, nesse particular, que nenhum dos nove NWS possui instituições governamentais voltadas para o desarmamento nuclear, mas tão somente para o controle de armamentos e a promoção da não proliferação de armas de destruição em massa. A própria expressão “desarmamento nuclear” é hoje mencionada em seus discursos apenas raramente, mesmo assim em geral como um objetivo distante, a ser eventualmente alcançado em um futuro indefinido e mediante diversas condicionalidades. 

O estudo preconiza a “intensificação de esforços” no sentido do desarmamento, mas não indica formas de atingir esse objetivo. Menciona nesse particular apenas a negociação de um futuro tratado de proibição de produção de matéria físsil para armas nucleares (FMCT).

Diversos membros da Conferência do Desarmamento têm insistido em que a produção de matéria físsil para armas nucleares já se encontra proibida aos NNWS pelo TNP Para estes, um FMCT tal como proposto seria redundante do ponto de vista da proliferação. Caso um futuro tratado de proibição de produção de matérias físsil não contenha a obrigação de destruir os estoques existentes, o FMCT seria inócuo do ponto de vista do desarmamento. 

Um dos aspectos mais sensíveis nas posturas dos países armados é o papel dos sistemas antimísseis na prevenção de ataques. China e Rússia têm expressado preocupação com o desenvolvimento das capacidades defensivas norte-americanas, que consideram ser um fator desestabilizador por exigirem modernização de suas próprias forças a fim de penetrar as defesas adversárias. Outro motivo de preocupação da China decorre do anúncio, contido na “Nuclear Posture Review” norte-americana de 2018, do desenvolvimento de uma ogiva nuclear para o míssil balístico de lançamento por submarinos (SLBM) e de estudos para um novo míssil de cruzeiro, a ser igualmente disparado a partir de submarinos (SLCM).

Pequim justifica a expansão de suas forças nucleares pelo temor de que tais sistemas passem a fazer parte das forças navais norte-americanas na região do oceano Pacífico asiático. Por sua vez, Washington atribui pouca credibilidade às reiteradas declarações chinesas de “não primeiro uso” de armas nucleares, devido à contínua expansão da capacidade nuclear da China.

As sugestões da NTI para reduzir o risco de uso de armas nucleares são sem dúvida construtivas e visam fortalecer a segurança do mundo.  Deve-se, contudo, registrar que a mera redução pressupõe a permanência do risco, embora em grau reduzido, e não sua eliminação.

Embora afirmem concordar com a necessidade de redução do risco, os nove NWS não se mostram dispostos a levar em consideração propostas no sentido do de desarmamento. Ao contrário, continuam empenhados em uma corrida em busca de novas tecnologias bélicas que aumentam a possibilidade de conflito com emprego de armas nucleares.

A recente entrada em vigor do Tratado de Proibição de Armas Nucleares oferece a oportunidade de cooperação construtiva entre NWS e NNWS. Para isso, no entanto, seria preciso que os NWS abandonassem sua posição de hostilidade ao tratado, que parece inconsistente com sua própria intenção, ao menos declarada, de favorecer o objetivo de um mundo livre de armas nucleares. 

O conhecido ditado de que “o ótimo é inimigo do bom” não se aplica à relação entre desarmamento nuclear e redução de riscos. É importante reduzir a ameaça de uso, porém mais urgente e necessário é abolir completa e absolutamente o perigo existencial inerente à existência de armas nucleares, mediante medidas juridicamente vinculantes, irreversíveis, escalonadas no tempo e verificáveis de desarmamento. O risco menor não produzirá um mundo mais seguro, e sim apenas um mundo menos inseguro. 

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