Guilherme Russo
Confinado há mais de dois anos na Embaixada do Equador em Londres, para evitar ser preso pelas autoridades britânicas e extraditado para a Suécia, onde é acusado de crimes sexuais, o australiano Julian Assange, fundador do site WikiLeaks, continua divulgando documentos secretos do governo americano.
Em entrevista por telefone ao Estado, Assange questionou o grau de independência do Brasil em relação aos EUA, afirmou que Israel comete crimes de guerra em sua ofensiva contra Gaza e disse que há uma "guerra fria" em andamento na Ucrânia. Em fevereiro, o australiano lançará no Brasil o livro Quando o Google encontrou o WikiLeaks, pela Boitempo Editorial. A seguir, a íntegra da entrevista.
O WikiLeaks afirma que Israel tem atingido alvos civis deliberadamente na atual incursão em Gaza.
Publicamos dois documentos relativos a esse assunto. O mais importante é, provavelmente, uma admissão do subchefe do Estado-Maior israelense (o major-general Gadi Eizenkot) para a Embaixada dos EUA em Tel-Aviv de que, pouco após a guerra com o Líbano de 2006, Israel planejava ir adiante com a "doutrina Dahiya", que é uma estratégia de retaliação contra valores, de tratar as regiões de onde ataques partem como alvos e de usar deliberadamente força desproporcional – o que significa matar a população civil que cerca a atividade militar, com o objetivo de impor pressão política na área. E isso é um crime de guerra, um crime de guerra brutal, não há dúvida sobre isso.
E essa estratégia é aplicada no atual conflito?
Na Guerra Fria, havia discussões sobre se as forças militares deveriam adotar estratégias de combater forças ("counterforce") ou de combater valores ("countervalue"). Countervalue é quando o objetivo é destruir o que é valioso para o oponente, incluindo a população civil. Counterforce é quando o alvo são apenas as forças militares do oponente.
Aquelas discussões chegaram à conclusão que, na maior parte das vezes, a estratégia de combate a forças deveria ser usada, que é ter como alvo militares e não a população civil. Mas Israel ataca com uma estratégia de destruir coisas de valor para os palestinos, incluindo infraestrutura e população civil.
'Os EUA são capazes de cortar o Brasil do resto do mundo em qualquer momento que queiram' |
O que o sr. achou de a presidente Dilma Rousseff ter cancelado a visita de Estado que faria aos EUA após a revelação da espionagem que a NSA fez ao governo brasileiro e à Petrobrás?
Foi um ato positivo de Dilma, de tentar demonstrar independência. Mas quando olhamos abaixo da superfície, infelizmente, podemos questionar quão independente o Brasil é. O País se mostra cada vez mais independente, mas sem chegar ao ponto de oferecer asilo a Edward Snowden, por exemplo. O Brasil foi um dos países que se recusaram a dar asilo a Snowden.
O sr. é a favor de um esforço para regular a internet internacionalmente?
É preciso uma legislação para evitar que governos interfiram na internet. Uma forma de regulação negativa, declarando que governos não deveriam centralizar a internet, bloqueá-la ou manipular seu conteúdo. As ações de governo e corporações podem ser reguladas de duas maneiras: declarando-se que eles devem fazer algo e têm oportunidades de fazer algo ou, também, que eles não devem fazer nada. Nós apoiamos uma regulação negativa da internet – ou seja, que não haja interferência de governos ou de corporações poderosas que, em razão de seu tamanho e escala, conseguem exercer funções tipicamente atribuídas a governos.
Não soa contraditório que um defensor da liberdade de expressão obtenha asilo de um governo que suprime liberdade de expressão e persegue seus opositores?
É uma ironia que os EUA tenham cancelado o passaporte de Edward Snowden quando ele estava a caminho da América Latina, dessa maneira forçando-o a aceitar o asilo russo e não de algum outro país. Mas, quando começamos a criticar a liberdade de expressão na Rússia – e há muito o que criticar – devemos nos lembrar que nenhuma nação da Europa Ocidental, nem o Brasil, se levantaram para dar asilo a Edward Snowden. Então, o que devemos questionar são os níveis verdadeiros de liberdade de expressão nesses países. E, é claro, nos EUA, onde ele não pôde falar livremente também.
O que há abaixo da superfície em relação a essa independência que o País tenta mostrar diante da comunidade internacional?
A posição física e geográfica do Brasil é próxima aos EUA e as telecomunicações brasileiras com o resto do mundo passam quase todas pelos EUA. O Brasil é um país que sim, tem sua independência, tem feito progressos significativos em se tornar independente – e podemos ver um exemplo disso na importante retirada simbólica do embaixador brasileiro em Israel. Mas o Brasil ainda precisa lutar para aumentar sua independência. E isso é importante para toda a América Latina.
Não depender de instalações de comunicação que passam pelos EUA contribuiria para que houvesse mais autonomia na região?
Sim. Neste momento, a Agência de Segurança Nacional intercepta quase todas as telecomunicações brasileiras com o resto do mundo. E isso compromete a autonomia do Brasil. Veja a Rússia, por exemplo, e o regime de sanções que lhe foi imposto. Os EUA são capazes de cortar o Brasil do resto do mundo em qualquer momento que queiram. Então, é importante que o Brasil e a América Latina como um todo tenham elos de telecomunicações independentes com o resto do mundo, para que não sejam isolados nesse sentido.
Há alguns outros aspectos a considerar, como a decisão do Brasil de comprar caças suecos, por exemplo: mais de 51% dos componentes daqueles caças vêm dos EUA – isso está em um documento que revelamos – e outros componentes vêm da Grã-Bretanha. Num eventual futuro conflito para o Brasil, um dos possíveis cenários estudados envolveria Estados apoiados pelos EUA na região, como a Colômbia, e a possível necessidade de intervir em uma crise humanitária na região do Caribe, por exemplo, poderia colocar o Brasil em conflito com os EUA ou a Grã-Bretanha, que controla muitas das ilhas caribenhas. No limite, os caças comprados pelo Brasil poderiam não estar funcionais, pois não haveria um abastecimento de componentes contínuo.
O sr. possui algum material sobre a crise ucraniana que esteja prestes a publicar? Ou gostaria de ressaltar informações de algum documento relativo a esse tema que tenha publicado recentemente?
Publicamos importantes materiais anteriormente que mostram que os EUA estavam cientes de que um conflito do gênero poderia surgir na Ucrânia se o país continuasse a se aproximar da OTAN e da Europa Ocidental. Na verdade, a Rússia revelou aos EUA suas linhas vermelhas em 2008. E esses documentos afirmavam que haveria um conflito entre o leste e o oeste da Ucrânia.
O mundo caminha, de alguma maneira, para reviver a Guerra Fria?
Uma guerra fria em relação à Rússia, uma guerra indireta em relação à Rússia, já está em andamento na Ucrânia. Esteve se desenvolvendo pelo menos desde 2004, com a expansão da Otan em outros países em abertura ao longo da fronteira russa e o crescente cercamento da Rússia. Uma abordagem similar vem sendo aplicada agora em países ao sul da China. Há um material sobre uma luta indireta com a China na África e o Africom (comando militar americano na África), criado para manter sob controle a influência chinesa na África.
Quais são as principais dificuldades que o sr. enfrenta por estar confinado há tanto tempo? O sr. planeja alguma manobra para conseguir sair da embaixada do Equador sem ser preso?
Em 16 de agosto completam-se dois anos do meu asilo político. O asilo tem sido obstruído desde então – o que é uma violação do direito internacional pela Grã-Bretanha.
Por não lhe ter sido concedido o salvo-conduto para que o sr. viaje ao Equador?
Sim. A lei internacional é clara: concessões de asilo sobrepujam pedidos de extradição. A Grã-Bretanha, em virtude de suas próprias razões políticas domésticas, está escolhendo não respeitar o asilo. A partir de 16 de agosto (quando se completam dois anos da concessão de asilo pelo Equador), tentaremos novamente resolver o impasse.
Então, o sr. considera que a Grã-Bretanha está violando o direito internacional.
Sim. A lei é clara e essa é também a opinião de professores de direito de Oxford.
Mas quais são as principais dificuldades que o sr. enfrenta em sua vida cotidiana?
A principal irritação é não ver o sol por mais de 20 minutos por dia em dois anos. Dito isso, a situação em que estou é consideravelmente melhor do que a de Chelsea Manning, uma de minhas fontes nos EUA – que foi sentenciada ano passado a 35 anos de prisão por revelar informações sobre os crimes de guerra dos EUA, conosco, para o público.
O sr. se sente de alguma maneira culpado pela prisão de Chelsea Manning?
A situação dela é algo que deveria preocupar todos os que são interessados em saber o que está realmente acontecendo no mundo. Em relação ao trabalho do WikiLeaks com aquele material, a alegação do Pentágono é que Chelsea Manning falou com um informante americano nos EUA. Não há nenhuma alegação de que teríamos fracassado em proteger nossas fontes.
Falando de seu próximo livro, por que o Google representa um perigo para a privacidade?
Nos últimos dez anos, o Google se tornou grande e mau. Todos nós vemos o Google como um serviço útil para buscas e administração de e-mails. Mas o Google integrou-se com o governo dos EUA de uma maneira que deveria preocupar a todos, incluindo americanos. Isso não é comum. É o crescimento natural de uma corporação nos EUA buscando controlar o mercado de exportação para se tornar dependente do Departamento de Estado Americano e das agências de inteligência dos EUA para guiar sua interação com o mundo. Mas o Google, como corporação, atrai agora mais de 1 bilhão de pessoas em seu esquema de vigilância em escala industrial.
Como ele conseguiu fazer isso?
Por meio do Android, o sistema operacional de mais de 80% dos smartphones sendo vendidos atualmente, o Google adquiriu informações detalhadas das pessoas usando seus telefones. Isso inclui localizações e o que elas estão buscando. A maioria dos websites usa propagandas que rastreiam os endereços que as pessoas visitam – e não apenas o próprio Google ou serviços como o buscador do Google, que também retiram informações deles.
O resultado é que o Google conseguiu integrar essa informação de todas as partes do mundo com seu serviço de mapeamento e isso foi centralizado nos EUA, onde é acessível para a inteligência americana. O Google se tornou essencialmente um monopólio mundial de coleta e integração de informações, que sabe muito sobre a maioria das pessoas que têm qualquer tipo de influência no mundo. E, em razão de sua relação com Washington e sua localização, na jurisdição dos EUA, isso estendeu dramaticamente o alcance do governo americano em todo o mundo.
Há outras corporações na internet que trabalham dessa maneira? O Facebook, por exemplo?
Sim, o Facebook é um problema significativo também, por razões muito similares. Incorporou bilhões de pessoas, tem base na jurisdição dos EUA e tem relação com Washington. Contudo, o Facebook está, talvez, onde o Google estava há 6 ou 7 anos, ainda não chegou a um nível em que está integrando tantos aspectos diferentes das vidas das pessoas.
Quando as pessoas pensam no Google, pensam no mecanismo de busca, mas, na verdade, o sistema está na maioria dos telefones, que estão informando ao Google as localizações das pessoas, seus contatos e o que elas estão procurando (na internet). Isso, combinado com todos os outros serviços do Google que estão sendo usados em muitos websites que as pessoas não estão cientes, rastreia as pessoas. O Google avançou também em outras áreas – não apenas na coleta de dados e em tentar tornar as pessoas o mais previsíveis possível -, agora está comprando outras empresas, comprou mais de oito companhias de robótica nos últimos 14 meses.
O sr. acredita que é possível para o cidadão comum escapar da vigilância do "Grande Irmão"?
É quase impossível. A questão é: você consegue preservar algumas áreas de sua vida da vigilância? É impossível agora, infelizmente, estar fora do sistema de coleta de informações dos EUA. Mas é importante preservar algumas áreas de sua vida, alguns de seus interesses, algumas de suas atividades políticas. É possível preservá-los? Com algum esforço, você consegue proteger uma pequena parte dessa atividade.
É necessário ser um especialista em computação para conseguir isso?
A maneira mais simples para as pessoas comuns é evitar todos os computadores, smartphones e interações com pessoas que os utilizam. Infelizmente, isso inclui o governo do Brasil, cujo sistemas são frequentemente invadidos pelos EUA. É bem difícil de fazer isso agora – por exemplo, se você vai a uma festa ou até se você mandar um e-mail para alguém afirmando que vai a algum lugar usando seu smartphone que tenha informações coletadas pelo Google ou outras pessoas podem relatar no Facebook que viram você com um amigo. É algo bem difícil de fazer, porque até se você restringir a quantidade de informação que você põe na internet, as organizações burocráticas e comerciais e os seus amigos estão relatando informações sobre a sua atividade.
Há algumas formas, há alguns programas razoavelmente simples de usar que protegem alguma informação, mas, para fazer isso da maneira adequada, infelizmente, você tem de ser um especialista. Contudo, nos últimos dois anos, as pessoas estão ficando cada vez mais conscientes do que está acontecendo. E as revelações de Snowden tornaram as pessoas mais conscientes. E o resultado é que há agora um mercado para telefones criptografados, uma demanda de mercado para telefones criptografados e e-mails privados e assim por diante.
E há pessoas trabalhando agora para suprir o desejo das pessoas de escapar. Nos próximos dois anos, nós veremos muitos programas de telefones criptografados e programas de chat criptografados – além de esforços para excluir informações pessoais em poder de companhias como a Amazon, que também as fornece para a CIA.
Há algo mais que o sr. gostaria de dizer para o público brasileiro?
Somente que os brasileiros têm sido muito solidários sobre meu trabalho e sobre a minha situação e, pessoalmente, eu lhes agradeço isso.