publicado Jornal da Ciência
José Monserrat Filho
Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB).
A China reafirma que "se opõe à instalação de armas ou a qualquer corrida armamentista no espaço exterior". As demais potências espaciais, exceto a Rússia, ainda não assumiram essa posição. A instalação de armas em órbita da Terra e a corrida por armamentos espaciais estão entre as maiores ameaças à sustentabilidade das atividades espaciais a longo prazo. A questão é crucial e está em debate hoje no Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço (COPUOS, na conhecida sigla em inglês). A manifestação chinesa consta do "Livro Branco sobre as Atividades Espaciais de 2011", lançado pelo governo às vésperas do ano novo, em 29 de dezembro, relatando o que realizou nos últimos cinco anos (desde 2006) e o que projeta realizar nos próximos cinco.
O documento dedica parágrafo especial ao tema "O desenvolvimento pacífico", onde frisa: "A China tem aderido sempre ao uso do espaço para fins pacíficos, e se opõe à instalação de armas ou a qualquer corrida armamentista no espaço exterior. O país se desenvolve e utiliza recursos do espaço de modo prudente e toma medidas eficazes para proteger o ambiente espacial, garantindo que suas atividades espaciais beneficiem toda a humanidade". E ainda: "A China trabalhará junto com a comunidade global para manter um espaço pacífico e limpo e oferecer novas contribuições à nobre causa de promover a paz mundial e o desenvolvimento".
Parte da imprensa viu o relatório espacial de Pequim como mera demonstração de um país candidato a "superpotência espacial", sobretudo pelos seus novos planos de exploração da Lua.
Eu diria que a China já é uma potência espacial, tanto pelas conquistas alcançadas, como pelo que planeja alcançar nos próximos anos. Desde 2006, ela efetuou 67 lançamentos que puseram em órbita 79 satélites com total êxito. Já realiza voos espaciais tripulados com seus próprios meios. Está construindo sua própria estação espacial e seu próprio sistema de navegação e posicionamento global, batizado de Beijou (Bússola), alternativo ao GPS americano – o Bússola já funciona e crescerá mais ainda nos próximos cinco anos, inclusive para monitorar o lixo espacial.
O problema é saber como, com que ideias e políticas, a China tem ganhado status de potência espacial. Vejo pelo menos quatro tipos de questões importantes a examinar a propósito, no livro branco, em especial para países como o Brasil, que mantém cooperação espacial com a China:
1) A visão chinesa do espaço;
2) O papel do espaço no avanço industrial da China;
3) Políticas de desenvolvimento; e
4) Políticas e prioridades na cooperação internacional.
A visão chinesa do espaço – A China define o espaço como "riqueza comum da humanidade". A seu ver, "a exploração, o desenvolvimento e o uso do espaço são busca incessante da humanidade". Para o dragão asiático, "a posição e o papel das atividades espaciais são cada vez mais importantes para a estratégia de desenvolvimento geral de cada país ativo e aumentam sua influência sobre a civilização humana e o progresso social".
"Os propósitos da indústria espacial da China são: explorar o espaço e ampliar a compreensão da Terra e do Cosmos; usar o espaço para fins pacíficos, promover a civilização humana e o progresso social, e beneficiar toda a humanidade; atender às demandas de desenvolvimento econômico, desenvolvimento científico e tecnológico, segurança nacional e progresso social; melhorar o conhecimento científico e cultural do povo chinês; proteger os direitos e os interesses nacionais da China e construir uma força nacional abrangente. A indústria espacial da China subordina-se e serve à estratégia nacional de desenvolvimento geral, e adere aos princípios de desenvolvimento científico, independente, pacífico, inovador e aberto."
São ideias de uma visão globalizada, em cujo centro estão a humanidade e a civilização humana. Os chineses não proclamam como prioridades a liderança exclusiva, a segurança e o interesse estratégico de um país ou grupo de países em detrimento dos demais, mas também não abrem mão do direito de proteger suas prerrogativas e interesses nacionais legítimos.
O papel do espaço no avanço industrial chinês – Esse capítulo e o seguinte são essenciais para entender o que move a China no espaço. E valem para países como o Brasil, com vocação e necessidades espaciais inequívocas, sobretudo pela extensão territorial e pelas riquezas naturais.
Eis alguns trechos sintomáticos do livro branco:
"O governo chinês faz da indústria espacial parte importante da estratégia geral de desenvolvimento da nação (…). Ao longo dos últimos anos, a indústria espacial da China tem se desenvolvido rapidamente, o que a coloca entre os países líderes do mundo em certas áreas relevantes da tecnologia espacial. As atividades espaciais desempenham papel cada vez mais importante no desenvolvimento econômico e social."
"Os próximos cinco anos serão um período crucial para a China construir uma sociedade moderadamente próspera, aprofundar a reforma e a abertura e acelerar a transformação do padrão de desenvolvimento econômico do país. Isto trará novas oportunidades para sua indústria espacial."
"A China concentrará seu trabalho nos objetivos estratégicos nacionais, reforçará sua capacidade de inovação independente, se abrirá ainda mais ao mundo exterior e ampliará a cooperação internacional. Assim agindo, dará o melhor de si para fazer sua indústria espacial se desenvolver melhor e mais rápido."
"A China respeita a ciência e as leis da natureza. Tendo em mente a situação atual de sua indústria espacial, ela elabora planos e arranjos abrangentes de suas atividades ligadas à tecnologia, às aplicações e à ciência espaciais, para manter o desenvolvimento integral, coordenado e sustentável da indústria."
"Mantendo-se no caminho da independência e auto-suficiência, a China apoia-se em primeiro lugar na própria capacidade para desenvolver a indústria espacial destinada a atender às necessidades de modernização, com base em suas condições atuais e sua força."
"A estratégia da China para desenvolver a indústria espacial é reforçar sua capacidade de inovação independente, consolidar suas bases industriais e melhorar seu sistema de inovação. Executando importantes projetos de ciência e tecnologia espaciais, o país concentra sua força em fazer descobertas-chave para promover saltos no desenvolvimento neste campo.
"A China persiste em combinar independência e auto-suficiência com abertura para o mundo exterior e cooperação internacional. Empenha-se ativamente em promover o intercâmbio e a cooperação espaciais no campo internacional, baseados na igualdade e benefícios mútuos, no uso pacífico e no desenvolvimento comum, esforçando-se para promover o progresso da indústria espacial da humanidade."
Políticas de desenvolvimento – É interessante conhecer as diretrizes traçadas pela China para desenvolver a indústria espacial:
"- Elaborar planos abrangentes e arranjos prudentes para as atividades espaciais; priorizar os satélites aplicados e as aplicações de satélites; desenvolver de forma adequada os voos tripulados e a exploração do espaço profundo; e apoiar ativamente a exploração científica do espaço.
– Fortalecer a capacidade de inovação em ciência e tecnologia espaciais; focar a execução de importantes projetos de ciência e tecnologia espaciais e promover o avanço da ciência e tecnologia espaciais por meio de novas descobertas em tecnologias críticas e integração de recursos; empenhar-se na construção de um sistema inovador de tecnologia espacial, integrando indústria, academia e comunidade científica espaciais, com empresas e instituições de pesquisa de ciência e tecnologia espaciais como principais participantes; reforçar a pesquisa básica na área espacial e desenvolver múltiplas tecnologias de ponta para aumentar a capacidade de inovação sustentável em ciência e tecnologia espaciais.
– Promover vigoroso desenvolvimento da indústria de aplicações de satélites. Elaborar planos abrangentes e construir infraestrutura espacial; promover o uso público compartilhado de recursos de aplicações de satélite; promover empresas "clusters", cadeias produtivas industriais e mercado para aplicações de satélites.
– Fortalecer capacidades básicas em ciência, tecnologia e indústria espaciais; a construção de infra-estrutura para desenvolver, produzir e testar naves espaciais e veículos lançadores; a construção de laboratórios e centros avançados de pesquisa em engenharia para a ciência e tecnologia espaciais; e o trabalho em informatização, direitos de propriedade intelectual e padronização das atividades espaciais.
– Reforçar o trabalho legislativo. Promover ativamente pesquisas sobre o direito espacial nacional, formular e aperfeiçoar gradualmente leis, regulamentos e políticas industriais para orientar e regulamentar atividades espaciais e criar legislação ambiental favorável a seu desenvolvimento.
– Garantir investimento sustentável e permanente às atividades espaciais; criar gradualmente um sistema de financiamento espacial diversificado e de múltiplos canais para garantir o investimento sustentável e permanente, em particular para fornecer mais amplos recursos financeiros a importantes projetos espaciais de ciência e tecnologia, de satélites aplicados e de aplicações de satélites, de tecnologias de ponta e de pesquisas básicas.
– Incentivar organizações e pessoas de todas as esferas da vida para participarem de atividades espaciais; incentivar institutos de pesquisa científica, empresas, instituições de ensino superior e organizações sociais, sob a orientação das políticas espaciais nacionais, para que aproveitem inteiramente as próprias vantagens e participem ativamente das atividades espaciais.
– Fortalecer a formação de profissionais para a indústria espacial; desenvolver de modo vigoroso um ambiente favorável ao desenvolvimento de profissionais, promovendo figuras de proa na indústria espacial e constituindo um contingente profissional bem estruturado e altamente qualificado no curso da execução de projetos relevantes e pesquisas básicas; dar publicidade ao conhecimento e à cultura espaciais, e atrair pessoal de alto nível para a indústria do setor."
Políticas e prioridades na cooperação internacional – Eis a lista apresentada:
"- Apoiar as atividades de uso pacífico do espaço, no âmbito das Nações Unidas, bem como as atividades de todas as organizações espaciais intergovernamentais e não-governamentais que promovam o desenvolvimento da indústria espacial;
– Dar ênfase à cooperação espacial da região Ásia-Pacífico e apoiar a cooperação espacial em outras regiões do mundo;
– Reforçar a cooperação espacial com os países em desenvolvimento e valorizar a cooperação espacial com os países desenvolvidos;
– Incentivar e endossar os esforços dos institutos nacionais de pesquisa científica, empresas industriais, instituições de ensino superior e organizações sociais para que desenvolvam o intercâmbio e a cooperação espacial internacional em diversas formas e em vários níveis, sob a orientação das políticas de Estado, leis e regulamentos pertinentes;
– Utilizar de modo apropriado os mercados interno e externo, e recursos de ambas as fontes, bem como participar ativamente da cooperação espacial internacional prática."
O livro branco também afirma:
"O governo chinês sustenta que cada país do mundo tem direitos iguais de explorar, desenvolver e usar livremente o espaço e os corpos celestes e que as atividades espaciais de todos os países deve beneficiar o desenvolvimento econômico, o progresso social das nações, a segurança, sobrevivência e desenvolvimento da humanidade.
A cooperação espacial global deve se submeter aos princípios fundamentais enunciados na "Declaração sobre a Cooperação Internacional na Exploração e Uso do Espaço Exterior em Benefício e no Interesse de todos os Estados, Levando em Espacial Consideração as necessidades dos Países em Desenvolvimento" (aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1996).
A China ressalta que o intercâmbio internacional e a cooperação devem ser reforçados para promoverem o desenvolvimento espacial inclusivo, com base na igualdade de direitos e benefícios mútuos, uso pacífico e desenvolvimento comum."
Tudo indica que o enfoque chinês da cooperação é não excludente e não discriminatório, isto é, não procura impedir os demais países de desenvolverem tecnologias espaciais. Todas essas concepções e decisões práticas foram omitidas em grande parte das informações divulgadas pela imprensa sobre o novo documento chinês, que merece exame ainda mais profundo.
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