José Monserrat Filho
Sem um acordo de salvaguardas tecnológicas com os EUA dificilmente o plano de comercialização do Centro de Alcântara terá êxito
O novo presidente da Agência Espacial Brasileira, Sérgio Maurício Brito Gaudenzi, que assumiu o cargo nesta terça-feira, está coberto de razões ao dar preferência, conforme suas declarações a 'O Globo' desta quarta-feira, a acordos internacionais que proporcionem ao Brasil acesso às tecnologias espaciais. Essa posição é importantíssima.
A verdadeira cooperação internacional na área estratégica das atividades espaciais requer trabalhos conjuntos para domínio recíproco de tais tecnologias, como estabelece o memorando de entendimentos assinado ainda em janeiro 2002 entre as agências espaciais do Brasil e da Ucrânia.
Aí está o melhor dos mundos nas relações espaciais, que, infelizmente, costuma ser raro neste setor estratégico, onde imperam atitudes contrárias ao intercâmbio e à transferência de tecnologias.
O Brasil precisa levar em conta essa realidade dura e por vezes até brutal. Não por acaso proliferam hoje os acordos de salvaguardas tecnológicas.
São instrumentos expressamente destinados a impedir de todas as formas possíveis as chamadas 'transferências não autorizadas de tecnologias'.
Para tanto, eles utilizam, entre outros, o recurso das 'áreas restritas', que são os locais em que as tecnologias de um país são instaladas em outro país, cercadas de todos os cuidados para que não seja transferida a este país ilegalmente.
O acesso a tais áreas restritas é altamente selecionado, sendo motivo de acordos especiais entre os dois países. O país que detém a tecnologia instalada quer estar seguro de que as pessoas que ingressem na sua área restrita não representam nenhum perigo de transferência ilegal.
Como exemplo histórico, temos os primeiros supercomputadores estabelecidos no Brasil. Não era qualquer brasileiro que tinha acesso àquelas máquinas estratégicas. Crachás especiais fornecidos pelo país dono da tecnologia eram indispensáveis.
O mesmo ocorre hoje com as tecnologias espaciais mais sensíveis. Os EUA, em especial, são rigorosos nesta matéria. Se alguma empresa norte-americana quiser usar os serviços de lançamento do Centro de Alcântara no Brasil, o equipamento que eles trouxerem para cá terá que ficar obrigatoriamente numa 'área restrita' para que as autoridades dos EUA tenham absoluta certeza de que essa tecnologia não será transferida ilegalmente para o Brasil.
Sem a adoção de tais cuidados, nenhuma empresa norte-americana virá fazer negócios com o Centro de Alcântara, embora nossa base possa oferecer lançamentos comerciais a preços e condições altamente competitivos.
As 'áreas restritas' existem em todos os países por onde passam tecnologias espaciais norte-americanas. Toda vez que um satélite dos EUA é lançado, por exemplo, na China ou na Rússia, esse satélite antes de ser lançado fica necessariamente numa 'área restrita'.
E nem a China, nem a Rússia consideram isso violação de sua soberania. Até porque 'área restrita' é uma concessão especial que um país abre a um país detentor da tecnologia para que este se sinta inteiramente seguro da inviolabilidade de sua tecnologia.
Hoje, os EUA são o país com maior demanda de lançamentos comerciais. Se o Centro de Alcântara quiser ter êxito como base de lançamentos comerciais terá que levar na devida conta o grupo absolutamente majoritário dos clientes norte-americanos.
Aqui não se trata de cooperação espacial. Trata-se abrir ou não possibilidade de negócios na concorrida área dos lançamentos comerciais.
Por isso, é tão importante que o Brasil tenha um acordo de salvaguardas tecnológicas com os EUA.
O que foi assinado em janeiro de 2000 pelo então ministro da C&T, Ronaldo Sardenberg, hoje representante do Brasil junto à ONU e ao Conselho de Segurança, foi resultado de um esforço imenso, pois os EUA, num primeiro momento, simplesmente se recusavam a negociar qualquer acordo neste sentido e depois exigiram como condição indispensável para o início das negociações que o Brasil desistisse do seu projeto VLS-1 (Veículo Lançador de Satélites).
O Brasil não aceitou as condições e conseguiu, mesmo assim, levar até o final o processo negociador que acabou no acordo de salvaguardas por fim assinado.
Muita gente no Brasil não gostou de algumas disposições do acordo, que, de fato, não teriam a menor chance de existir se as relações internacionais contemporâneas fossem regidas por práticas mais justas e equânimes.
Não obstante, quem analisar o acordo com lupa e descer a todos os detalhes, poderá verificar que o Brasil em momento algum perde o controle do Centro de Alcântara.
Não há cessão de território, não há aluguel de território. O que há é a prestação de um serviço de lançamento comercial, para o qual qualquer cliente terá que obedecer as leis brasileira de licenciamento e autorização em pleno vigor.
Há quem queira mudar o acordo. Se isso puder ser feito, tanto melhor. O que me parece imprescindível é que tenhamos absolutamente clara a noção de que sem um acordo de salvaguardas com os EUA dificilmente o plano de introduzir Alcântara – com toda a sua privilegiada posição geográfica – no mercado mundial de lançamentos comerciais terá sucesso.