“Como conciliar o uso militar do espaço, suas ameaças e efeitos incontroláveis, seus danos e perdas imprevisíveis, com o dever de atender ao bem e aos interesses da totalidade dos países numa atividade vista como atributo de toda a espécie humana?”
A destruição do satélite espião norte-americano NROL-21 por um míssil anti-balístico, decretada pelo governo dos EUA, levanta questões jurídicas internacionais sobre o uso militar do espaço cósmico que merecem ser conhecidas e estudadas com muita atenção.
Ainda que o míssil anti-balístico não esteja sendo usado em missão de guerra, é óbvio que o fato, se efetivado, poderá ser visto como preparação para uma guerra no espaço.
Certo, o lançamento de mísseis balísticos não está proibido pelo Tratado do Espaço, de 1967, a lei maior das atividades espaciais, ratificado por cerca de 100 países e de aceitação universal.
O Artigo 4º deste tratado proíbe a colocação em órbita da Terra de artefatos de destruição em massa (nucleares, químicos e biológicos). Mas os vôos sub-orbitais (que não entram em órbita) de mísseis, inclusive com armas de destruição em massa a bordo, não estão proibidos. Um míssil anti-balístico, quando acionado, não precisa entrar em órbita para cumprir sua missão. Um vôo sub-orbital basta.
Ocorre que o Tratado do Espaço, embora não vete o vôo sub-orbital dos mísseis anti-balísticos, consagra acima de tudo, em seu espírito e lógica interna, o uso do espaço para fins pacíficos. Já no preâmbulo, ele reconhece “o interesse que representa para toda a humanidade o programa de exploração e uso do espaço cósmico para fins pacíficos” e expressa o desejo de “contribuir para o desenvolvimento de ampla cooperação internacional no que concerne aos aspectos científicos e jurídicos da exploração e uso do espaço cósmico para fins pacífico”.
O Artigo 9º, por sua vez, determina que se um país “tem razões para crer que uma atividade ou experiência realizada por ele mesmo ou seus nacionais no espaço cósmico (…) criaria um obstáculo capaz de prejudicar as atividades dos demais Estados (…) em matéria de exploração e utilização pacífica do espaço cósmico (…), deverá fazer as consultas internacionais adequadas antes de empreender a referida atividade ou experiência”.
Isso implica que os EUA, que ratificaram o Tratado do Espaço, deveriam consultar os demais países antes de destruir o seu satélite inoperante, pois isso poderá produzir efeitos potencialmente perigosos aos outros países. Não parece que esta regra tenha sido respeitada.
O compromisso do Tratado do Espaço com a paz e a cooperação fica ainda mais evidente no Artigo 1º, chamado “cláusula do bem comum”. Segundo ele, as atividades espaciais “deverão ter em mira o bem e o interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade”.
Daí a pergunta: como conciliar o uso militar do espaço, suas ameaças e efeitos incontroláveis, seus danos e perdas imprevisíveis, com o dever de atender ao bem e aos interesses da totalidade dos países numa atividade vista como atributo de toda a espécie humana?
Numa época de terrorismo desenfreado, promovido com e sem o apoio de governos, este desafio se torna especialmente complicado.
O mais coerente, natural e necessário, neste momento, é seguir o caminho do bem comum. Ele nos conduz a um grande tratado internacional, como o proposto pela Rússia e China na Conferência de Desarmamento, em Genebra, na terça-feira passada, dia 12, proibindo o uso de armas no espaço.
Tanto a China quanto os EUA já estão na corrida pela criação de armas anti-satélites, que vão desde mísseis até canhões de laser.
A China testou um míssil ao abater um velho satélite meteorológico, em 11 de janeiro de 2007. Os EUA estão empenhados há anos em instalar um sistema global anti-míssil, capaz de se converter em um sistema de eliminação de satélites que eles próprios considerem, de forma unilateral, como “inimigos”.
Essa tendência, claro, põe em risco a segurança de um sem-número de países. E só poderá ser revertida por amplo acordo, que não só interrompa o processo armamentista atual mas também garanta a segurança permanente de seus signatários e de toda a comunidade de países.
Hoje tal acordo está longe de ser alcançado. Mas um novo governo norte-americano poderá repensar positivamente a questão. O jornal “The New York Times”, em editorial publicado sábado último, dia 16, afirma que “os EUA, como a nação mais dependente de satélites, deveria trabalhar para banir todas as armas anti-satélites”, porque “esta é a melhor forma de proteger a segurança dos EUA e sua credibilidade”.
Seria talvez bem-vindo, em um eventual novo clima norte-americano, um posicionamento mais vigoroso sobre o assunto por parte das chamadas potências médias. A Europa, com certeza, não negaria seu apoio a tão sensata mudança de rumo.
Afinal, não se trata, ainda, de fechar o espaço cósmico a todo e qualquer uso militar – inexistem condições políticas para tanto no mundo atual.
Por ora, trata-se apenas de impedir a instalação e o uso de qualquer tipo de arma no espaço. A medida, obviamente, convém à esmagadora maioria dos países, que não tem motivos para ver o espaço cósmico a não ser como um santuário de paz e uma fonte inesgotável de benefícios para seus programas nacionais de desenvolvimento sustentado aqui na Terra. Alguma dúvida?