Fernanda Corrêa
Historiadora, estrategista e pesquisadora do
Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense.
fernanda.das.gracas@hotmail.com
A arte de espionar: uma história de sedução
Desde os tempos bíblicos, quando Moisés enviou pessoas de sua confiança para obter informações sobre a “Terra Prometida”, já existia a prática de espionagem. Inconcebível imaginar a manutenção do Império Romano sem a prática de espionagem para a fim de garantir a segurança do próprio Império. Faz parte do cotidiano das sociedades a pesquisa e a coleta de informações estratégicas que beneficiem no seu dia-a-dia.
Em geral, a política cultural cinematográfica retrata a espionagem como uma imagem sedutora, luxuosa e aventureira. Os filmes de espionagem são populares desde a década de 1950, embora desde a década de 1930, já fossem retratado na cinematografia mundial, como Mata Hari (1932), The 39 Steps (1935) e Secret Agent (1936). Difícil encontrar um cinéfilo que não se simpatize pela trama de James Bond, um fictício agente secreto do serviço de espionagem inglês MI-6, criado em 1953. No entanto, a espionagem, enquanto arte de obter informações sigilosas, sem autorização, para obter vantagens militares, políticas, econômicas, tecnológicas e/ou sociais, tem nos últimos anos se intensificando, forjando intrigas, conflitos e guerras que ultrapassam qualquer valor legal, ético, moral e institucional.
Inteligência de Estado à serviço da Política Internacional
Um caso que se tornou bastante evidente foi a alegação do ex-presidente George Walker Bush de que, descumpriu a resolução do Conselho de Segurança da ONU de não intervir militarmente no Iraque, em 2003, por ter sido enganado pelos seus serviços de inteligência de que o Iraque tinha um arsenal de armas de destruição em massa. Bush saiu da presidência com a popularidade mais baixa da história dos EUA, no entanto, a suspeita de que outros países no Oriente Médio disponham de arsenais nucleares e químicos continuou motivando atores poderosos do sistema internacional a propor sanções e ações militares contra estes países.
Por suspeitar de que o Irã estava desenvolvendo armas nucleares e descumprindo o TNP, do qual é signatário, o candidato à presidência dos EUA, Mitt Romney, em 2012, afirmou, sem qualquer prova evidente, que, se eleito, a guerra contra o Irã e a Síria seria declarada imediatamente após sua eleição. Embora Obama tenha vencido as eleições presidenciais, o discurso intervencionista militar no Oriente Médio não deixou de persistir e de ganhar aliados na política internacional.
Armas químicas e escalada da Guerra contra a Síria
Atualmente, Obama tem mobilizado a opinião pública internacional para propor ações político-militares contra a Síria. Vídeos e imagens de pessoas, inclusive, crianças sírias agonizando tem circulado na internet acusando o Governo sírio de ter utilizado armas químicas contra a sua própria população. Isso tem dividido a opinião pública sobre uma intervenção militar internacional na Síria. Em 1º de setembro deste ano, os serviços de inteligência franceses afirmaram ter provas de que o Governo de Bashar al Assad possui um arsenal de 1.000 toneladas de armas químicas e agentes tóxicos, entre eles, gás sarin, mostarda e VX, e que o Governo teria, no dia 21 de agosto, utilizado este tipo de arma contra o povo sírio, provocando a morte de mais de 1.400 pessoas.
A Rússia, contrária a intervenção militar na Síria, participa de que estas acusações não passam de provocações daqueles que querem envolver outros países no conflito sírio, assegurando o apoio de outros poderosos atores internacionais. Putin tem acusado os EUA de interceptarem conversas que não podem servir de base para a tomada de decisões político-militares contra um Estado soberano. Além disso, o presidente russo tem exigido que Obama apresente provas aos investigadores das Nações Unidas e ao Conselho de Segurança desta instituição.
Após a apresentação de um relatório da inteligência francesa na Assembléia Nacional de que a Síria dispõe de um dos maiores arsenais de armas químicas do mundo, a França e os EUA têm se mobilizado na opinião pública para formar uma coalizão militar contra a Síria.
Os rebeldes sírios são confiáveis?
Pergunta: ainda que se prove que a Síria disponha de um arsenal de armas químicas, existem provas cabais de que Assad tenha autorizado o ataque contra a sua própria população?
No último dia 27 de agosto, o Governo sírio entregou aos investigadores da ONU documentos que, supostamente, comprovam que foram os rebeldes sírios que utilizaram armas químicas contra a população. O chefe da delegação parlamentar do Irã, Allaeddine Boroujerdi, em visita a Damasco, na Síria, disse, neste último dia 31 de agosto, que, em 2012, o Irã havia informado oficialmente aos EUA de que os rebeldes sírios possuíam armas químicas.
A acusação do emprego de armas químicas contra os civis, inicialmente, partiu dos próprios rebeldes sírios. Diante de numerosas denúncias contra os rebeldes sírios de terem sido os promotores do ataque a vila al-Duvair, de maioria cristã, nos arredores de Homs, no dia 27 de maio deste ano, no qual houve um massacre de civis, inclusive, mulheres e crianças, de terem ligações comprovadas com a rede terrorista Al-Qaeda e de serem vistos em fotos e vídeos executando, degolando e assassinando pessoas, inclusive, soldados, padres, autoridades políticas e militantes aliados ao Assad na mídia internacional, qual a credibilidade ética e moral para que a opinião pública internacional confie nas acusações dos rebeldes sírios de que o Governo tenha promovido o ataque químico contra o povo sírio?
Espionagem no mundo
Desde que o australiano Julian Assange, jornalista, fundador e um dos 9 membros do conselho consultivo do WikiLeaks, tem trazido a tona documentos, vídeos e imagens confidenciais de desrespeito as regras e direitos políticos, jurídicos e humanos internacionais, a espionagem internacional tem exposto Governos, empresas, organizações, instituições e pessoas na opinião pública internacional.
Em 2009, Assange trouxe ao público internacional documentos comprovando o emprego de armas químicas em prisões na África e em Guantánamo. Em 2010, o Wikileaks publicou vídeos e documentos comprovando o desrespeito às normas internacionais e aos direitos humanos na guerra contra o Afeganistão e o Iraque. E em novembro deste mesmo ano, o Wikileaks, juntos com El País, Le Monde, Der Spiegel,The Guardian e The New York Times, passaram a publicar os telegramas sigilosos da diplomacia dos EUA.
A notoriedade de Assange e do Wikileaks foi reconhecida internacionalmente. Embora perseguido pela Justiça estadunidense por vazar informações confidenciais dos EUA, Assange se tornou, na opinião pública internacional, um herói que luta pela Justiça, pela Liberdade e pela Democracia.
Dentre as inúmeras fontes dos Wikileaks, duas têm se destacado na mídia internacional: o ex-soldado estadunidense Bradley Manning, o qual foi condenado a 35 anos de prisão pelo vazamento de quase um milhão de telegramas diplomáticos e ficheiros do Departamento de Defesa dos EUA sobre as guerras do Afeganistão e do Iraque, e Edward Snowden, ex- consultor técnico da National Security Agency (CIA, sigla em português) dos EUA, o qual revelou os documentos secretos sobre o modus operandi da agência estadunidense para os jornais The Guardian, da Inglaterra, e para o Washington Post, dos EUA.
Em 7 de junho, o Washington Post publicou detalhadamente a existência de um programa de monitoramento secreto dos Estados Unidos, envolvendo setores de inteligência da Microsoft, Facebook e Google.
Espionagem estadunidense no Brasil
Desde dezembro de 2012, o Wikileaks tem tornado público o modus operandi dos EUA para contrair informações sigilosas brasileiras, desde as vulnerabilidades do espaço aéreo brasileiro e ações da presidenta Dilma Rousseff na ditadura até as facilidades de entrada de empresas estadunidenses no mercado brasileiro, a exploração de urânio no Brasil e a escolhas do caças de combate para a Força Aérea Brasileira. Ao todo, as informações estão contidas em um conjunto de mais de 250 mil relatórios sigilosos da diplomacia estadunidense focados no período que vai de 1966 até 2010.
Desde 2012, o Governo brasileiro recebeu provas de que o País estava sendo monitorado por agências governamentais dos EUA, no entanto, somente em julho deste ano, após denúncias graves que ferem a Constituição brasileira, divulgadas ao público pela mídia nacional, a presidenta tratou mais enfática e energicamente das acusações de espionagem dos EUA no Brasil.
O Governo brasileiro exige explicações da Casa Branca e afirma que a cooperação transnacional no combate ao terrorismo e outras formas de crimes transnacionais não justificam a violação de direitos individuais de qualquer cidadão em qualquer país e em qualquer lugar do mundo. Em reunião da cúpula do MERCOSUL, em julho deste ano, Dilma defendeu a adoção de medidas cabíveis no Mercosul para evitar a repetição de casos de espionagem.
A política externa brasileira construiu a imagem no sistema internacional de que o Brasilé um país com instâncias altamente qualificadas que conseguem defender e expandir os interesses nacionais.
Defendendo reformas democráticas e multilaterais no CSONU e afirmando ser capaz de dar respostas aos problemas mundiais, o Brasil sustenta o posicionamento de que só apóia intervenções militares mediante a aprovação deste Conselho. Isso justifica o discurso não intervencionista do Brasil desde a Guerra contra o Iraque, em 2003, até o posicionamento do Brasil sobre a coalizão que França e EUA estão tentando formar contra a Síria no sistema internacional.
Ao exigir esclarecimentos dos EUA sobre as graves denúncias de espionagem no Brasil, a política externa está demonstrando uma imagem de fragilidade política do País diante da comunidade internacional. O Brasil tem despontado no sistema internacional como uma provável potência mundial, a curto prazo, interferindo na política e na economia do estruturalismo deste sistema. Aos velhos jogadores deste sistema, o Brasil está se tornando um potencial concorrente e iminente ameaça aos seus interesses e, por isso, os velhos jogadores se utilizam de velhas práticas, como a espionagem, para obter informações que lhes sejam vantajosas.
Não cabe ao Brasil exigir explicações dos EUA. O princípio de legitimidade, por julgar ser a maior potencial mundial, na concepção dos EUA, justifica a sua onipresença e suas ações no mundo. É de conhecimento amplo que o poder das instituições internacionais, como a ONU, em impedir intervenções e guerras tem seus limites. E estes limites são os interesses das potências mundiais.
Alegando que o ataque com armas químicas na Síria foi o mais grave do século XXI, Obama tem desconsiderado a não aprovação do CSONU e condicionando a intervenção militar unilateral, exclusivamente, ao aval do Congresso estadunidense.
Exigir o quê dos EUA, então?
Se há a imagem de que o Brasil é capaz de oferecer respostas aos problemas políticos, econômicos e sociais no sistema internacional, este é o momento do Brasil, estrategicamente, utilizar as vulnerabilidades do sistema em benefício próprio, defendendo o posicionamento multilateral e os interesses brasileiros no sistema internacional.
É preciso reforçar o sistema de contra-inteligência no Brasil. Em um mundo globalizado e interdependente, diante de crises é fundamental que o País esteja preparado para antecipar às ações dos oponentes e/ou concorrentes, prevendo a possibilidade de ameaças e oportunidades e implementando ações eficientes que assegurem a salvaguarda dos conhecimentos e ativos das pessoas e das agências que possam ser de interesses externos. Todas as agências e empresas que exercem funções chaves na política e na economia devem sofrer uma mudança de mentalidade corporativa, sendo reeducados a considerar que a eficiência das medidas de segurança depende da tecnologia e, principalmente, das pessoas. A discrição, a seleção e o treinamento de pessoal são fatores intrínsecos ao trabalho da inteligência de Estado e, portanto, estratégicos.
Além disso, ainda que haja limites aos poderes das instituições internacionais, como a ONU, por o Brasil defender o discurso multilateral, são nelas que este País deve recorrer para formalizar denúncias que ameaçam a soberania do Brasil, exigir punições da ONU aos EUA e, estrategicamente, pleitear o assento permanente neste CS.