Série de três artigos:
Por Carlos Chagas
O Rio amanheceu cantando, dia 2 de abril. Não adianta tapar o sol com a peneira, nem esquecer, muito menos agredir a História. A classe média apoiou o golpe de 1964, engendrado pelas elites e, fora as exceções de sempre, ignorado pelas massas. A Igreja, na época, muito contribuiu para produzir aquele sentimento. Os meios de comunicação, também.
É claro que durou pouco a ilusão. A primeira defecção veio do “Correio da Manhã”, que nos dias 31 e 1 publicou editoriais rompendo com o presidente João Goulart e até pregando sua deposição: “BASTA!” e “FORA!”. Quinze dias depois, o bravo matutino já denunciava desmandos e acabou sufocado pelos próprios.
Mas é bom ater-nos aos fatos. Já em Brasília na tarde do primeiro dia de abril, o presidente da República recebeu do Comandante Militar do Planalto, general Nicolau Fico, a informação de estar rebelada quase toda a guarnição local. Não havia garantias para sua permanência. Na Base Aérea, um “coronado” da Varig aguardava para conduzi-lo a Porto Alegre, onde imaginava resistir, tendo dias antes mandado para lá um general legalista, Ladário Pereira Teles. Apesar de três estrelas, faltando-lhe a quarta, ele assumiu interinamente o comando do III Exército.
O problema é que na Capital Federal, oficiais da Aeronáutica sabotaram o moderno avião da Varig, obrigando Jango a aguardar horas pelo concerto e, afinal, viajando num Avro, de performance mais lenta. Só irá aterrissar alta madrugada do dia 2.
Enquanto isso, no Congresso, a confusão era geral, ainda que as notícias do sucesso da rebelião continuassem chegando. Ou melhor, as notícias da falta de resistência por forças governistas, sindicais ou populares.
O avião presidencial voava, na noite de 1 para 2 de abril, quando o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, convoca sessão conjunta de deputados e senadores e surpreende a todos informando estar João Goulart fora da sede da República, “em lugar incerto e não sabido” e concluindo: “neste momento, declaro vaga a presidência da República!”. Foi um tumulto. Primeiro porque o líder do governo na Câmara, Tancredo Neves, esclareceu estar o presidente viajando para o Sul. Depois, porque a Constituição não previa esse tipo de vacância. Ao mesmo tempo, no palácio do Planalto, Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil, e Waldir Pires, Consultor Geral da República, redigiam nota confirmando estar Jango na plenitude de seus poderes. Um detalhe, porém, dava o tom da crise: já não havia um só datilógrafo para copiar o comunicado. Darcy mesmo catou milho numa remington…
As bancadas do PTB, do Partido Socialista e afins resistiam, até aos palavrões, mas Auro imediatamente convoca os presentes a comparecerem à sede do Executivo para assistirem à posse do substituto legal, o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli. Quando chegam ao Planalto, no começo da madrugada, tropas rebeladas já compunham a guarnição. Foram improvisados dois ministros do Supremo Tribunal Federal, para assistir a cerimônia, mas faltava um general. Nicolau Fico mesmo serviu.
No Rio, naquela tarde, o general Costa e Silva, como o mais antigo, assumiu o gabinete de ministro da Guerra, tendo entre mil contactos com os quatro Exércitos, telefonado também para a Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende. “Dê as ordens, chefe”, respondeu do outro lado da linha o general comandante do estabelecimento, Garrastazu Médici.
Costa e Silva alertava para o risco de tropas da Vila Militar, legalistas, irromperem pela Via Dutra, conforme havia ordenado o general Moraes Ancora. Médici dispôs os cadetes, armados de fuzis e metralhadoras, às margens da rodovia, mas, por via das dúvidas, em duas trincheiras: uma voltada para o Rio, outra para São Paulo, no caso de não serem verdadeiras as informações sobre a adesão do general Kruel.
Ficou acertado que na própria Academia das Agulhas Negras se reuniriam os revoltosos, agora com Kruel já chegando de São Paulo, e Moraes Ancora, vindo do Rio com a disposição de render-se e aceitar o fato consumado.
Naquela mesma hora as tropas do general Mourão Filho entravam no Rio, sem encontrar a menor resistência. Erro crasso ele cometerá, penitenciando-se depois ao chamar-se de “vaca fardada”: em vez de prosseguir e tomar o ministério da Guerra, como chefe virtual da revolução e ainda em meio à confusão, preferiu estacionar seus soldados no estádio do Maracanã… Perdeu a vez, porque Costa e Silva já enquadrava os generais, inclusive Castelo Branco, assumindo o poder maior no Exército. Um golpe branco em meio à perplexidade geral, demonstrando como vale a ousadia, nas horas de crise.
Eram quatro da madrugada do dia 2 de abril quando o avião levando João Goulart desce em Porto Alegre. Desde a meia noite no aeroporto, o general Ladário Pereira Teles e o deputado Leonel Brizola dormitavam em bancos de madeira da base aérea. Receberam o presidente, foram para a sede do comando do III Exército e lá, pela manhã, examinaram a situação, convocando os generais que serviam na capital gaúcha. Muitos demonstravam já estar apoiando o golpe, outros mantinham-se cautelosos, mas todos reconheciam que as unidades do interior, comandadas pelos generais Pedro Poppe de Figueiredo e Adalberto Pereira dos Santos já cercavam Porto Alegre. Dava para resistir algum tempo, porque ainda existiam tropas fiéis e Jango poderia, junto com Brizola, mobilizar a população. Ia correr muito sangue. O presidente decide-se pelo exílio no Uruguai. Tudo desmorona como um castelo de cartas. As informações são de que unidades antes aquarteladas na capital gaúcha ganhavam as ruas, rebeladas. O general Ladário dirige-se a João Goulart dizendo que poderia garantir sua segurança ainda por duas horas, até o aeroporto, onde um pequeno avião o conduziria ao país vizinho. Jango concorda, havia há dias mandado esposa e filhos para Barcelona, na Espanha. Ladário volta-se para Brizola: “o deputado gostaria que também o conduzíssemos à Base Aérea?”
Resposta: “eu não me chamo João Goulart”. Depois de ficar escondido na casa de amigos e de tentar inutilmente organizar a resistência, lembrando-se da campanha da legalidade de 1961, Brizola também voará para o exílio, valendo-se de um teco-teco que o recolhe numa praia do litoral, disfarçado com a farda de soldado da Brigada Gaúcha. João Goulart, antes de chegar ao Uruguai, faz com que o pequeno avião desça em São Borja, em sua fazenda, onde ficará um dia, imaginando que os militares repetiriam com ele o episódio verificado em 1945 com Getúlio Vargas, quando os generais responsáveis por sua deposição permitiram que permanecesse em sua cidade natal. O já ex-presidente é informado de que se não seguir para o exílio será preso, processado e submetido a constrangimentos diversos. Saiu. Só voltou morto para ser enterrado ao lado de Getúlio Vargas, anos depois. Vale registrar que João Goulart e Leonel Brizola, refugiados no mesmo pequeno país, nunca se viram, jamais conversaram, apesar de o ex-governador ser casado com a irmã do ex-presidente…
Comédia ou tragédia, a peça estava apenas no primeiro ato. O general Costa e Silva reúne-se com a cúpula da Marinha e da Aeronáutica e decidem, a 2 de abril, formar o Comando Supremo da Revolução. Além dele, o almirante Augusto Rademaker e o brigadeiro Francisco de Assis Correia de Mello. Não contestam diretamente, mas demonstram onde está o poder, certamente não com Ranieri Mazzilli, em Brasília. O presidente interino da República, por via das dúvidas, nomeia os três militares seus ministros. Mas não manda nada.
Logo a Junta Militar, instalada no Rio, divulga a lista do cem brasileiros mais procurados pela revolução: João Goulart, Leonel Brizola, Luis Carlos Prestes, Francisco Julião, Darcy Ribeiro, Raul Riff e mais uma penca de ditos subversivos. Começam as cassações de mandatos e suspensões de direitos políticos. Desta vez, dizem eles, o poder não será devolvido aos civis.
Coincidência ou não, os militares vão buscar o jurista Francisco Campos, velhinho, autor da Constituição fascista de 1937, para fantasiar o golpe. A necessidade de legalizar o ilegalizável será uma constante nos próximos 21 anos. Um texto primoroso, apesar de maléfico, é editado logo a seguir: “a revolução se legitima por si mesma, é a fonte do poder constituinte, encarna os anseios da nação, sendo ela que legitima o Congresso, jamais o contrário”.
Uma página ainda a acrescentar naqueles dias tão bicudos quanto previsíveis: vai reagir o grupo intelectualizado dos golpistas, a “Sorbonne”, surpreendidos com a rapidez com que Costa e Silva tomou o poder. Através da mídia e da influência junto à maioria da opinião castrense, Castelo Branco, Cordeiro de Farias, Juarez Távora, Eduardo Gomes, Jurandir Mamede, Ernesto Geisel, Golbery do Couto e Silva e outros buscam dar a volta por cima e conseguem. Sob a alegação de que se tudo continuasse como estava, seríamos a mais execrável ditadura do planeta, conseguem impor a prevalência da Constituição, naquilo que não contrariava seus interesses. Apresentam a candidatura do general Castelo Branco, já feito marechal, à presidência da República, que o Congresso engole. Depois, foi o que se viu: 21 anos de ditadura.
Faltou um detalhe que poderia não ter sido detalhe, mas o principal. Ainda com Jango em território nacional, o presidente Lyndon Jonhson, dos Estados Unidos, reconhece o novo governo brasileiro. Ao mesmo tempo, autoriza a “Operação Brother Sam”. Uma esquadra deixa o Caribe com um porta-aviões, diversos navios de apoio, dois petroleiros e um submarino, além de “marines”, para o caso de o Brasil entrar em guerra civil. Imagine-se de que lado ficariam nossos irmãos do Norte… (Final)