Search
Close this search box.

Guerra das Águas – Sede Escassez e Mortes no Interior do Brasil

Nota DefesaNet

O jornal O Estado de São Paulo começou, no dia 02 Fevereiro 2020, curiosamente dia de Iemanjá, a Série Guerra das Águas.

Ufanisticamente o Brasil adota a posição que tem 20% do vólume de água doce do mundo. Porém a distribuição e o desleixo com o cuidado dos mananciais tem levado a Crises Sistêmicas. Mais sentida nas áreas urbanas (São Paulo, Rio de Janeior, Brasilia, Belo Horizonte, etc).

Leitura recomendada no site onde há vários elementos gráficos com o excelente texto de Patrik Camporez e fotos e vídeos de Dida Sampaio

Site o Estadão A Guerra das Águas Link

 

Série Guerra das Águas

I  –  Sede Escassez e Mortes no Interior do Brasil

II –  Exército controla poços e caminhões-pipa no Nordeste

 

Texto  Patrik Camporez

Fotos e vídeos de Dida Sampaio

 

Era noite de futebol. O jogador e líder comunitário Haroldo de Silva Betcel, o Véu, de 34 anos, foi assassinado com um golpe de chave de fenda nas costas num campinho às margens do Igarapé Tiningu, em Santarém, no Pará. A Polícia Civil disse que o crime ocorreu na disputa entre ribeirinhos e fazendeiros pelo controle do curso que morre no Rio Tapajós. No Brasil de hoje, água virou caso de polícia.

Um levantamento inédito feito pelo Estado revela que há 63 mil Boletins de Ocorrência (BOs) abertos em delegacias nos últimos cinco anos, por causa da briga pela água. É um litígio que vem crescendo. Sem conseguir resolver o antigo problema dos conflitos de terras, o País vive agora uma nova crise. Cada curva de rio caudaloso e de córrego quase seco é disputada à bala, à foice e à chave de fenda. Antes, praticamente não havia registros desse tipo.

O Estado percorreu áreas de tensão no Amazonas, Bahia, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Pará, Paraíba, Pernambuco e Tocantins, além do Distrito Federal. As desavenças envolvem hidrelétricas, companhias de abastecimento, comunidades tradicionais, fazendas, pequenas propriedades e indústrias.

Há duelos até mesmo entre Estados. Num conflito que chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), São Paulo e Rio de Janeiro se enfrentam pelo Rio Paraíba do Sul. O curso é um retrato da falta de controle no uso da água, com seu leito atingido pela destruição das matas ciliares e por canais clandestinos. Com menos água, a proporção de esgoto ali aumentou.

Os problemas estão por trás da crise que ocorre, atualmente, na cidade do Rio. Em dezembro do ano passado, os cariocas foram surpreendidos com uma água de cor e odor diferentes nas torneiras. A Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro é criticada por falta de transparência. A empresa responsável por distribuir a água da Estação de Guandu, abastecida pelo Paraíba, foi uma das concessionárias que negaram informações à reportagem.

Em São Paulo, o Sistema Cantareira, que abastece a região metropolitana, opera em alerta desde a grande crise de 2013 e 2014. No Espírito Santo e em Minas Gerais, os rejeitos das barragens da Vale contaminaram a Bacia do Rio Doce e acirraram conflitos pelos afluentes ainda limpos. Os traçados dos córregos do Feijão e do Ferro do Carvão desapareceram.

Tensão

Casos assim são o retrato de um ciclo marcado por rivalidades e, muitas vezes, descaso do poder público. Atualmente, há 223 “zonas de tensão” permanente de disputas por água no Brasil. Há dez anos, eram apenas 30, segundo relatórios da Agência Nacional de Águas (ANA).

O Estado analisou 900 ações do Ministério Público Federal, mil registros da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e 200 casos levantados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) sobre conflitos por água, fora os milhares de BOs policiais. A reportagem avaliou, ainda, relatórios de órgãos do governo federal obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Os documentos revelam, em geral, a preocupação com o alastramento dos confrontos, nos próximos dez anos.

O crime envolvendo água é algo novo na vida dos policiais civis e militares e até dos agentes da polícia ambiental. Para piorar a situação, as secretarias estaduais de Segurança Pública não tabelam esses dados.

Com 12% de toda a água doce do planeta, as 12 regiões hidrográficas brasileiras, como as bacias do São Francisco, do Paraná e do Amazonas – a mais extensa do mundo –, registram o “boom” dos conflitos. Hoje, os rios nacionais são sugados três vezes mais do que há duas décadas.

 

RIOS VIGIADOS

Nos últimos cinco anos, 63 mil boletins de ocorrência foram abertos em delegacias do País por causa de brigas por água. É o que mostra levantamento inédito do Estado. As desavenças envolvem hidrelétricas, companhias de abastecimento, comunidades tradicionais, fazendas, pequenas propriedades e indústrias. Há duelos também entre Estados – São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, se enfrentam no STF pelo Rio Paraíba do Sul.

Para detalhar esses conflitos, Patrik Camporez e Dida Sampaio percorreram áreas do Amazonas, Bahia, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas, Pará, Paraíba, Pernambuco, São Paulo, Tocantins e Distrito Federal. E encontraram de poços guardados pelo Exército a lagos vigiados por escolta armada e canal cercado por muro.

É mais um tempo de tensão e sede no semiárido. Numa sala de 40 metros quadrados, decorada com monitores de alta resolução em um prédio no interior de Petrolina, em Pernambuco, o vigilante Flávio Silva tem uma visão ampla dos canais. Ele e outros sete colegas contam, ainda, com um drone, três moto-patrulhas e uma viatura caracterizada para evitar a retirada de água de antigos canais do Rio São Francisco, 24 horas por dia. A fiscalização irrita os sertanejos que não conseguem pagar licença de cerca de R$ 3 mil para abastecer seus sítios e casas.

Os “vigias da água” trabalham para uma firma de segurança que presta serviço à empresa Distrito de Irrigação Nilo Coelho (Dinc), uma terceirizada da estatal Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf). Os canais proibidos para boa parte dos moradores e sitiantes foram construídos ainda nos anos 1980 e 1990 para irrigar, especialmente, plantios de frutas para exportação.

Tudo indica que, a partir da entrega da nova transposição do rio, iniciada em 2007, as regras de distribuição também sejam proibitivas para os pequenos produtores. A preocupação tornou-se real com a decisão de prefeitos e governos estaduais de deslocarem vigilantes e policiais militares para os eixos, com o objetivo de vigiar onde a água começa a correr. O governo tem dado prioridade ao abastecimento humano e ainda não definiu como será a partilha para a irrigação.

Enquanto isso, os sertanejos se arriscam em retiradas clandestinas, numa disputa silenciosa com a firma terceirizada pela empresa Dinc. “Nossa presença intimida, mesmo a gente não sendo polícia”, disse o vigilante Flávio.

A criminalização de quem não tem água é um drama a mais no semiárido. A equipe de reportagem estava próxima do canal, em Petrolina, quando testemunhou o momento em que um morador se aproximou do curso com um balde e um barril, olhou para os lados e, mesmo demonstrando medo, tirou a água dali. Era Cosme Angelo, 26 anos, que dividiria o barril com 20 vizinhos.

Cosme se queixou de que a mesma água disponível à irrigação é proibida para os moradores. “É uma luta diária. Se eu for pegar água direto no rio, tenho que buscar a mais de 20 quilômetros, nas costas. Então, prefiro correr o risco de me verem e chamarem os vigias da água para fazer a ocorrência”, desabafou, ofegante.

Plantador de manga na zona rural de Petrolina, Francisco das Chagas Ferreira Garcia, o Tico Vaqueiro, migrou com a família de Exu para Petrolina há 23 anos.

A migração no rumo do rio provocou inchaço populacional e acirrou as disputas por água na área onde os exportadores de frutas se instalavam. O projeto do Distrito de Irrigação Nilo Coelho é administrado pela Codevasf. Tico Vaqueiro, 54 anos, só planta em metade dos 20 hectares de sua propriedade, pois não consegue elevar a conta de água, que já chega a R$ 4 mil. “As empresas conversam direto com o governo e conseguem mais água. Por outro lado, se um pequeno furar um cano e colocar uma bomba-sapo, vai preso”, disse.

É início de agosto. Não chove há oito meses em Cabrobó, sertão pernambucano. O casal Rosa Maria dos Santos Landin, de 54 anos, e José Pedro Landin, de 56, não sabe de onde vai tirar água para matar a sede de 360 cabras. A menos de cem metros do sítio deles passa o Eixo Norte da nova transposição. O canal foi inaugurado no fim do governo Michel Temer, mas a água não atingiu volume para ser distribuída.

A obra ainda depende de estações de bombeamento e finalizações dos reservatórios. Rosa e José acreditaram que a água chegaria logo e investiram em plantio de lavoura e criação de cabras. Perderam dinheiro. Para manter os animais, a família sai em busca de garoba, uma planta que contém água.

De volta ao sítio, Rosa e José começaram a contagem das cabeças. Animais não têm retornado. Com o desmatamento da Caatinga, onças se aproximaram à procura de presas domésticas.

Como bichos têm caído no canal, de cinco metros de profundidade, e moradores e produtores retiram água sem autorização, o governo construiu um muro para impedir o acesso. “A água fica pertinho e não podemos tirar. Agora, fizeram essa parede aí”, reclamou Rosa. “Para a gente tomar banho, lavar roupa, saciar as cabras, tinha que ser essa aí mesmo. Com o muro, nem essa temos. Meu Deus do Céu!”

O pequeno produtor João de Deus Gonçalves, de 65 anos, costuma conferir, todos os dias, se a obra foi retomada. “Não tenho esperança de que a transposição vá funcionar. Ela anda um pouco para frente e se deteriora para trás”, disse. “Sempre tem bomba queimando, erro de engenharia.”

O Eixo Norte da transposição era para levar água de Cabrobó até o Ceará e o Rio Grande do Norte. A água, porém, não passou de Pernambuco – o ministro do Desenvolvimento Regional, Gustavo Canuto, prometeu que isso ocorrerá em breve. João de Deus testemunhou cada passo da obra, desde as primeiras “picadas” abertas no mato durante o governo Fernando Henrique Cardoso.

A nova transposição do Velho Chico foi licitada por R$ 4,5 bilhões, mas já consumiu, em 13 anos, R$ 10,8 bilhões. O governo Lula estimou que a conclusão dos dois eixos, Norte e Leste, ocorreria em 2012.

Agora, a gestão de Jair Bolsonaro promete finalizar a obra até o fim do mandato. No ano passado, o Ministério do Desenvolvimento Regional aplicou R$ 1,3 bilhão no projeto, com investimentos na manutenção e na pré-operação.

Compartilhar:

Leia também
Últimas Notícias

Inscreva-se na nossa newsletter