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Lorenzo Carrasco – Desafios da reaproximação Brasil-Rússia

Lorenzo Carrasco – Desafios da reaproximação

Brasil-Rússia

 

Lorenzo Carrasco e Geraldo Lino

Resenha Estratégica do MSIa

 

A ostensiva reaproximação com a Federação Russa apresenta ao Brasil dois desafios fundamentais. O primeiro é dar a ela um conteúdo prático, em termos de ampliação das relações comerciais e econômicas e cooperação para o desenvolvimento em várias áreas. O segundo, inseri-la adequadamente no contexto da reconfiguração geoestratégica global em curso, evitando, ao mesmo tempo, enredá-la na armadilha da “Guerra Fria fake” proposta pelos EUA frente à Rússia.

Vislumbrada desde a participação virtual do presidente Jair Bolsonaro na reunião do Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, em junho último, a reaproximação entre Brasília e Moscou foi aprofundada no final do ano passado, com as visitas oficiais à capital russa do chanceler Carlos França e do secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, almirante de esquadra Flávio Rocha, e deverá culminar com a viagem do próprio presidente a Moscou, em fevereiro, a convite de seu homólogo russo Vladimir Putin.

A reaproximação coincide com a oportunidade da presença do Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas, nos próximos dois anos, o que ajuda a explicar a indisfarçada inquietação manifestada pelos EUA, evidenciada pela iniciativa de uma videoconferência do secretário de Estado Anthony Blinken com França, em 10 de janeiro.

Na ocasião, segundo o boletim do Departamento de Estado, Blinken enfatizou o que chamou “prioridades compartilhadas, incluindo a necessidade de uma resposta forte e unida contra novas agressões russas contra a Ucrânia” (Resenha Estratégica, 12/01/2022).

Tal preocupação já havia se manifestado logo após a participação de Bolsonaro no Fórum de São Petersburgo. Em agosto, a Casa Branca enviou a Brasília o conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan e o assessor presidencial Juan González, para reforçar a oferta de elevar o Brasil à condição de “parceiro global” da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), dentro de uma agenda que ressaltava uma “presença militar” da Rússia na América Latina, inclusive, na vizinha Venezuela.

Da mesma forma, o reaquecimento das relações bilaterais tem causado incômodo entre alguns segmentos da mídia nacional comprometida com uma visão anglófila e, por tanto, caudatária dos interesses estratégicos e econômicos dos EUA, condição que a faz propensa a reproduzir internamente as tratativas de gerar um clima de Guerra Fria. Um exemplo deste desconforto são as colunas de notórios “russófobos” da mídia nacional, Jamil Chade (UOL) e José Casado (Veja).

O primeiro usou sua coluna de 11 de janeiro (“Cúpula entre Bolsonaro e Putin colocará Brasil sob pressão”) para um duplo ataque aos chefes de Estado. Bolsonaro é acusado de viver “um isolamento esplêndido diante da impossibilidade de ser recebido por alguns dos principais chefes de Estado pelo mundo ocidental”, e a visita a Moscou é apresentada como “uma eventual saída” para mostrar “que não foi abandonado no cenário internacional”. Por sua vez, Putin é rotulado como um “oportunista”, que vê o encontro “como uma chance de ampliar sua influência na América do Sul”.

 

Chade encerra a sabujice com uma chave de pirita (mineral dourado conhecido como “ouro de tolos”): “No Conselho de Segurança desde 1º de janeiro de 2022, a diplomacia brasileira vive sua primeira encruzilhada geopolítica, principalmente se ainda pretender buscar algum status de aliado militar de membros da OTAN. Hora de os profissionais do Itamaraty definirem o rumo da política externa e tirarem as crianças da sala.”

Ele esquece que os adultos retomaram o comando do Itamaraty após a saída de Ernesto Araújo, cegamente comprometido com os interesses estadunidenses que associava a uma ilusória “defesa da civilização cristã ocidental”. Ademais, a reaproximação a Rússia não implica em um alinhamento automático, mas uma intenção de restabelecimento da política exterior independente, já debilitada durante todo o período da “Nova República”. E esta é a verdadeira preocupação de Washington e seus simpatizantes brasileiros.  

O texto de Casado, publicado em 17 de janeiro, explora as repercussões das declarações do vice-chanceler russo Sergei Ryabkov e do vice-presidente do Comitê de Defesa do Parlamento (Duma), Alexei Zhuravliov, sobre uma eventual colocação de armas nucleares em países como a Venezuela, Nicarágua e Cuba, em resposta a um avanço da OTAN na Ucrânia. Em particular, criticou o silêncio a respeito: “Efeitos colaterais já são evidentes para o Brasil, mas o governo e os candidatos à presidência se mostram alheios à realidade.”

A questão é que declarações feitas no calor de discussões diplomáticas frustrantes não devem ser confundidas com probabilidades reais, que exigem análises menos filtradas por preconceitos ideológicos e mais baseadas no conhecimento das circunstâncias concretas.

Ao contrário da estadunidense, a estratégia militar russa é eminentemente defensiva, ainda que não exclua a possibilidade de ações preventivas em casos extremos, e baseada em estritos cálculos de custo/benefício, compatíveis com um orçamento militar inferior ao do Reino Unido e equivalente a menos de 10% do oficialmente disponível ao Pentágono.

Contra as mais de 800 bases e instalações militares dos EUA em 80 países, a Federação Russa tem apenas dez (na Síria, Quirguistão, Cazaquistão, Armênia, Bielorrússia, Abcázia, Ossétia do Sul, Tajiquistão e Transnístria). Com exceção da Síria, todas se situam em antigas repúblicas soviéticas e a maioria delas abriga estações de radar, vigilância e ensaios, sendo desprovidas de capacidade ofensiva.

Sob tais critérios, o estabelecimento de infraestruturas militares ofensivas na América Latina não faria o menor sentido para a Rússia. A alternativa teria custos econômicos e políticos de tal magnitude que superariam em muito eventuais vantagens estratégicas. Dificilmente, por exemplo, as nações latino-americanas veriam com bons olhos a instalação de potenciais alvos de uma retaliação militar estadunidense na sua vizinhança.

De resto, as Forças Armadas russas podem perfeitamente dispensar bases próximas para alinhar ameaças críveis ao território estadunidense, para o que a ampliação do seu formidável arsenal de mísseis hipersônicos (contra os quais os EUA não têm defesas viáveis) representa uma opção muito mais econômica e efetiva.

Portanto, o Brasil, às voltas com uma plêiade de problemas sérios, não tem motivo algum para preocupar-se com elucubrações do gênero. Ao contrário, o País pode e deve tratar de ampliar e melhorar a pauta comercial bilateral (atualmente, em desvantagem para o Brasil) e aprofundar as oportunidades de cooperação com a Rússia. Áreas promissoras são a energia nuclear, tecnologia aeroespacial, pesquisa científica e tecnológica avançada e outras, além de atuar em sinergia com iniciativas que reforcem a consolidação de uma ordem de poder multipolar e cooperativa nas relações internacionais.

Um exemplo das possibilidades foi proporcionado pelo veto russo no Conselho de Segurança das Nações Unidas à resolução que pretendia incluir as mudanças climáticas entre as ameaças de segurança nacional, em dezembro último. Se tivesse sido aprovada, a proposta tinha um sério potencial de criar problemas para o Brasil, no tocante à possibilidade de considerar uma proteção percebida do bioma Amazônia como ameaça à segurança internacional.

Finalmente, é importante contextualizar que todo este quadro estratégico decorre da derrota estratégica da “Nova Ordem Mundial” estabelecida na esteira da dissolução da União Soviética, em 1991. O pensamento hegemônico ocidental não assimilou a ressurreição estratégico-militar da Rússia, na qual muitos veem a inspiração de uma autêntica revolta global contra a “Nova Ordem” e a cultura do “identitarismo” fomentada pelos seus mentores como um instrumento de guerra irregular contra os Estados nacionais enquadrados na sua agenda.

Recorde-se que, no Brasil, a emergência da “Nova Ordem” motivou o abandono da sua política externa independente, gerando uma acomodação às pautas da “globalização”, entre elas, a renúncia a certas tecnologias de ponta e a submissão passiva aos ditames do ambientalismo-indigenismo. Por conseguinte, nada mais natural que, nos seus estertores, o Brasil se empenhe para recuperar a sua independência externa e a noção plena de grandeza  como coprotagonista das mudanças globais em marcha.

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Nota DefesaNet

Apesar de o governo de João Figueiredo, o último general da ditadura, ser muitas vezes descrito como “patético e errático” ou “um acúmulo de fracassos” — nas palavras de Elio Gaspari —, êxitos da política externa de 1979 a 1985 entusiasmam historiadores. Comandado pelo chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro, o Itamaraty, em um país imerso na crise da dívida externa e em transição política, contornou situações delicadas como a Guerra das Malvinas, a ascensão de um governo socialista sob influência cubana no Suriname e divergências nas relações com os Estados Unidos.

 

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