Exército lança Consulta Pública politicamente motivada.
O sistema de lançador de mísseis e foguetes Astros equipado com o míssil MANSUP, da Marinha, embarca para manobras em Fortaleza em avião KC-390, da FAB Foto: Marinha do Brasil
Marcelo Godoy
Portal Estadão
24 Março 2025
Está lá no Anexo IV da Consulta Pública 01/2025 lançada pelo Estado-Maior do Exército para o fornecimento de três tipos de drones: as empresas, sejam elas nacionais ou internacionais, só poderão participar da concorrência se não estiveram submetidas à Regulação Internacional do Tráfico de Armas (ITAR, na sigla em em inglês), a legislação americana que dá ao Departamento de Estado dos EUA o poder de controlar a exportação de tecnologias militares de Defesa.
A compra dos drones faz parte de um dos programas estratégicos da Força Terrestre, a Aviação do Exército Brasileiro. Ele conta com previsão de gastos de R$ 4,9 bilhões, dos quais 20% já haviam sido executados até 2023. Os equipamentos existentes, como o Nauru 1000C, ficam hoje na base aérea de Taubaté (SP), sede do Comando de Aviação do Exército (CAvEx).
A coluna ouviu generais envolvidos direta e indiretamente na consulta pública e todos eles foram unânimes em afirmar que a decisão que exclui as empresas que podem sofrer o controle americano se deve ao novo cenário geopolítico criado pelo presidente Donald Trump, que tornou ainda mais urgente a necessidade de desenvolvimento autônomo da indústria nacional de Defesa.
Trata-se de caminho semelhante ao da União Europeia, após Washington se mostrar um parceiro instável no compromisso de defesa comum. Essa mudança levou o Canadá e Portugal a abandonar a compra de caças F-35 americanos, bem como a Austrália a rever o bilionário acordo para a obtenção do submarino nuclear, o AUKUS. E ainda à decisão histórica de a Alemanha flexibilizar o controle fiscal para permitir gastos militares acima do limite de endividamento estatal e criar um fundo de € 500 bilhões para a Defesa, com duração de 12 anos.

Atualmente, o Exército dispõe do drone Nauru 1000C, que foi usado na Operação Perseu, em 2024, pela Aviação da Força Terrestre Foto: Divulgação/Exército
O edital assinado pelo General de Brigada Marcelo Rocha Lima, do Escritório de Projetos do Exército (EPEx), afirma que entre os resultados pretendidos na compra dos drones (SARP Catg3) está o de que as peças de menor vida útil tenham fornecedores nacionais e tecnologia desenvolvida no Brasil, fomentando a economia nacional e reduzindo a necessidade de aquisições no exterior.
Além disso, afirma o edital, “deve ser possível a utilização de suprimentos e de soluções de gestão nacionais e, naqueles em que não houver essa possibilidade, deve ser considerada a possibilidade de uso de acordos de compensação para que se obtenha a nacionalização de cada elemento, sendo vedada a importação de elementos fabricados no Brasil”.
Os drones que o Exército quer comprar devem ter peso máximo de 700 quilos na decolagem e atingir a altura de 6 mil metros (18 mil pés) durante o voo. Seu alcance deve ser de 300 quilômetros. Ele deve ter ainda a capacidade de levar quatro foguetes de 70 mm ou dois mísseis.

O anexo IV da Consulta Pública 01/2025 do Estado-Maior do Exército traz a exigência de que os novos drones do Exército não estejam sujeitos à política de exportação de armas do governo dos EUA Foto: Reprodução / Estadão
Atualmente, o Brasil produz dois tipos de mísseis: o MAX 1.2 AC, que é um artefato anticarro de combate capaz de golpear um inimigo a 2 quilômetros, e o Mansup, que é um antinavio que atinge embarcações a 70 quilômetros – futuramente, a 200 quilômetros. O Exército desenvolve ainda o Míssil Tático de Cruzeiro-300 (MTC-300), com capacidade para atingir alvos a 300 quilômetros de distância.
O MTC-300 está com 80% do seu projeto executado, mas depende do fim do imbróglio que envolve a recuperação judicial da Avibrás para ser concluído. Há dois anos o governo de Luiz Inácio Lula da Silva patina sem encontrar saída para essa indústria estratégica para o País. Audiências judiciais e assembleias foram adiadas – a última, no dia 18, foi postergada para 10 de abril sob a alegação de que se aguardam negociações com a Black Storm Military Industries, da Arábia Saudita.
Enquanto isso, o Exército aguarda uma solução definitiva, ainda que seja a falência da empresa, para poder levar o projeto do MTC-300 – que pode ser disparado pelo Sistema Astros – para outra empresa. Ao mesmo tempo, os militares esperam uma resposta do SouthCom, o Comando Sul dos EUA, depois que o almirante Alvin Holsey cancelou a missão americana que, após a posse de Trump, visitaria Brasília.

O embarque do MANSUP, da SIATT, dentro da plataforma ASTROS de lançamento do míssil, da AVIBRAS, em um avião KC-390, da Embraer; indústria nacional Foto: Marinha do Brasil
No mesmo período, o SouthCom manteve e divulgou atividades intensas com a Argentina, Panamá e Guatemala. Os generais em Brasília desmentem um distanciamento das relações entre os dois países e acreditam que tudo será normalizado em breve, o que não significaria uma reavaliação da urgência de se buscar um desenvolvimento autônomo para a garantia de nossa soberania.
É o que tem sido defendido por militares da reserva, como o general Otávio Santana do Rêgo Barros. Em artigo publicado no Jornal do Commercio, o general afirmou que os acordos de outrora já não bastam para assegurar a paz. E questionou: “Quando os ladrões de soberania arrombarem a nossa porta, qual o preço estaremos dispostos a pagar para defender a nossa liberdade?”
Enquanto o Exército busca o desenvolvimento autônomo da base industrial de defesa, a Marinha e a Força Aérea fizeram uma operação conjunta que uniu equipamentos feitos no Brasil por três empresas diferentes. O veículo lançador de foguetes e mísseis Astros, fabricado pela AVIBRÁS, foi carregado com mísseis MANSUP, produzido pela SIATT, em um avião de transporte KC-390, da Embraer.

O porta-helicópteros francês Mistral (L9013) que participa os exercícios anfíbios com a Marinha do Brasil na Operação Jeanne d’Arc, na costa do Ceará Foto: Marinha do Brasil
A operação na quinta-feira levou o equipamento até Fortaleza, onde o ASTROS, usado pelo Corpo de Fuzileiros Navais, participa de manobras conjuntas com a Marinha da França, quatro dias depois de a Embraer anunciar a instalação de uma fábrica na Polônia – US$ 2 bilhões em investimentos – para fornecer o KC-390 para os países da OTAN, como Portugal, Hungria, Holanda, Polônia e Suécia.
Os exercícios das marinhas brasileira e francesa no Ceará começaram no dia 22 e vão até o dia 26 e envolvem meios navais, terrestres, aeronavais e de fuzileiros navais de ambos os países. Ali estão o navio doca multipropósito Bahia (NDM Bahia), do Brasil, o porta-helicópteros anfíbio Mistral (L9013) e a fragata Surcouf (F711), da França, além de outras dezenas de embarcações.
Ao todo, a Operação Jeanne d’Arc envolve 1,2 mil militares, sendo 600 brasileiros e 600 franceses da Marinha Nacional Francesa e da 9.ª Brigada do Exército, a força anfíbia francesa. “A colaboração entre as duas marinhas permite o intercâmbio de conhecimentos e a experimentação de novas doutrinas e procedimentos, contribuindo para a evolução das capacidades operacionais de ambas as nações”, informou a Marinha brasileira.

Uma bateria do sistema Astros, do Exército, prepara-se para lançar foguetes durante a Operação Perseu, em dezembro de 2024, em Resende, no Rio Foto: Marcelo Godoy / Estadão
Ou seja, a fratura atlântica causada por Trump acontece quando a indústria militar brasileira aprofunda seus laços com a Europa bem como a diplomacia militar ganha novos contornos diante das necessidades de desenvolvimento dos programas estratégicos de suas Forças Armadas. Além da Europa, a Índia surge como opção de parceria com seu sistema de artilharia antiaérea de média altura.
A autonomia brasileira é um caminho há muito defendido também por setores políticos da esquerda. Na década passada, eles enxergavam vantagens de um acordo estratégico com a França, que se confirmou em parte na escolha feita pela Marinha do Brasil para a construção do Álvaro Alberto, o primeiro submarino a propulsão nuclear de uma nação que não dispõe de armas atômicas.
Esse cenário fez muitos analistas se lembrarem do acerto francês de buscar independência do cobertor americano e constituir sua Force de Frappe, com suas 290 ogivas nucleares que podem ser disparadas por submarinos e aviões franceses. O general Charles de Gaulle, então presidente francês, sempre mencionava as razões que o levaram à decisão de possuir a bomba atômica.

O submarino Tonelero no dia de seu lançamento no complexo naval de Itaguaí, no Rio; construído por meio de acordo com a França Foto: Marinha do Brasil
A defesa da pátria era o centro do discurso de De Gaulle, como ele deixou claro no Volume 2 de suas Memórias de Guerra, ao tratar do descaso americano e inglês em relação a ele e à soberania da França durante a 2ª Guerra. Mais tarde, não se cansou de expor os motivos de sua desconfiança em relação às negociações dos americanos com os russos sobre o status de Berlim e da Alemanha no pós-guerra.
“Se pensamos que não se deve, nas circunstância atuais, atacar o que existe na Alemanha, é porque acreditamos que toda negociação sobre esse tema correria o risco, como já disse, de levar a um recuo do Ocidente, o que agravaria o perigo (…). Basta olhar o mapa para se convencer”, disse o francês em 1962. O mapa sempre mostrou que o Reno é muito mais estreito do que o Atlântico.
O destino de toda a Europa, “do Atlântico aos Urais”, dependia, para De Gaulle, da união entre Alemanha e França. A lição do general dialogava com a defesa comum europeia, pensada por Alcide De Gaspari, o democristiano que governara a Itália. De Gaulle a considerava chave para a sobrevivência de uma Europa sem impérios.