Wálter Nunes
Com Eliseu Barreira Junior e Humberto Maia Junior
Os pilotos da Air France se orgulham de carregar a tradição dos desbravadores da Compagnie Générale Aéropostale, a empresa do serviço aéreo postal francês fundada em 1919, pioneira em cruzar os oceanos. O escritor Antoine de Saint-Exupéry foi um deles e ajudou a dourar o mito. Isso na década de 1930. Passados mais de 80 anos, a tão propalada cultura dos sucessores de Exupéry está no centro de um debate sobre a aplicação dos procedimentos de segurança na Air France – que nasceu da fusão da Aéropostale com outras empresas.
O desastre do voo AF 447, que caiu no mar quando fazia a rota do Rio de Janeiro a Paris, em junho de 2009, ainda é uma ferida aberta. Na última terça-feira, um tribunal francês condenou a empresa a pagar e126 mil à família de cada uma das 228 vítimas – um valor provisório que poderá aumentar à medida que a investigação do governo for concluída. A própria Air France encomendou uma auditoria para avaliar como a cultura de prevenir acidentes está enraizada na empresa. O estudo, feito sete meses após o acidente, aponta falhas como ausência de liderança de chefes, subordinados pouco comprometidos e a presença de procedimentos complexos demais.
A auditoria foi feita por oito especialistas com currículos estrelados. À frente deles estava o americano Curt Graeber. Ele participou da investigação do acidente com o ônibus espacial americano Challenger, que explodiu no ar em 1986. Durante um ano, o grupo estudou a estrutura da empresa, conversou com funcionários, analisou as normas internas e observou situações de trabalho e treinamento. Criou também um site para receber informações anônimas dos empregados. ÉPOCA teve acesso ao resultado desse estudo e submeteu-o à análise do ex-piloto e oficial da Aeronáutica Jorge Barros, um dos mais respeitados especialistas em segurança de voo do país. “Quando ocorre um acidente, as pessoas desconfiam de defeitos nas aeronaves, falhas no controle de voo ou erros dos pilotos, mas ignoram que problemas nas relações humanas também podem derrubar um avião”, diz Barros.
O relatório não tem a pretensão de explicar o acidente do voo AF 447, um evento isolado e de causas específicas. Sua importância está em mostrar como uma empresa em dia com as normas internacionais, com índice de acidentes menor que a média da aviação comercial, ainda tem muito que aprimorar em sua política interna. “A Air France é a única companhia aérea a ter se submetido, por iniciativa própria, à opinião de um time externo de especialistas”, afirma Pierre-Henri Gourgeon, presidente do grupo Air France-KLM. “Ao implementar suas recomendações, que compreendem uma combinação entre as melhores práticas observadas individualmente em outras companhias aéreas do mundo, a Air France colocará a performance de segurança de seus voos no mais alto patamar possível.” As demais empresas também têm a ganhar com essa autocrítica. “Muitos dos problemas encontrados pela auditoria feita na Air France são comuns em outras companhias aéreas, inclusive as nacionais”, afirma Barros.
O relatório afirma que a força do sindicato dos aeronautas francês dificulta a adoção de normas de segurança, ao discutir demais a implantação de iniciativas. No Brasil a relação dos aeronautas com as empresas também é problemática, mas na direção oposta. Eles cedem às pressões das companhias. “Os funcionários são complacentes com o sistema e desrespeitam os princípios de segurança”, diz o comandante Carlos Camacho, diretor de Segurança de Voo do Sindicato Nacional dos Aeronautas. “Apesar de estarem cansados depois de trabalhar três madrugadas seguidas, os pilotos realizam voos a pedido das companhias aéreas. Eles se submetem a rotinas de trabalho pesadíssimas, em que podem colocar em risco sua vida e a vida de outras pessoas, por medo de perder o emprego.”
Camacho também critica o método de treinamento pela internet adotado pelas companhias aéreas brasileiras. “Os cursos on-line são bem elaborados, mas difíceis para quem não está habituado a ler”, diz ele. Quando têm aulas em casa, pilotos e tripulantes perdem a oportunidade de discutir e aprender com as dúvidas dos colegas. “As provas são raras, e geralmente podem ser feitas em casa.”
Convidadas a falar sobre suas políticas de treinamento e prevenção de acidentes, Gol e TAM, líderes do mercado brasileiro, evitaram dar detalhes. Responderam que atendem aos padrões exigidos pelos órgãos de aviação nacionais e mundiais. A Gol diz ter "um dos maiores quadros do mundo na área de segurança operacional, com mais de 150 colaboradores". A TAM afirma que integra o grupo Star Alliance e, assim, adota práticas e níveis de exigência comuns às 27 companhias aéreas associadas.