Uma semana após manifestação que desaguou na invasão do Capitólio – e no dia em que a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos aprovou novo processo de impeachment contra Donald Trump por 'incitação à insurreição' – apoiadores do republicano que participaram do ato do dia 6 de janeiro em Washington D.C. se dizem "envergonhados" e "decepcionados" com o desfecho do ato e os desdobramentos políticos dele.
À BBC News Brasil três manifestantes revisitaram suas memórias daquela tarde e arriscaram explicações – parte delas baseadas em teorias da conspiração – para o desfecho do ato: cinco mortes e o Congresso depredado, com parlamentares evacuados depois de terem sido forçados a interromper a sessão que ratificaria Joe Biden como presidente eleito do país.
Os entrevistados dizem ter participado do ato porque se sentem ignorados pelas instituições americanas nas alegações de fraude eleitoral – que o presidente Trump falhou sistematicamente em provar em oito Estados – e que a frustração e a raiva levaram parte do grupo às cenas de violência.
Afirma ainda que grupos de esquerda se infiltraram no movimento para incitá-los a invadir o Congresso, acusação refutada inclusive por congressistas republicanos. E se dividem sobre as responsabilidades de Trump na ação, que se tornaram foco do processo de impeachment.
"Tudo o que foi feito naquele dia era necessário, menos invadir o Capitólio", afirma o empresário Chad Kulchesky, de 32 anos, que se juntou à massa naquela manhã acompanhado da mulher e dos sogros. De Delaware, ele trouxera consigo uma bandeira de Trump estilizado como o personagem de ação Rambo, uma mochila com água e lanches e uma faquinha de bolso.
Naquele dia, ele havia afirmado à reportagem da BBC News Brasil que "não vamos ficar parados enquanto tomam o país da gente". Duas horas depois de ter dito isso, Kulchesky calcula que estivesse a cerca de 10 metros da escadaria do Capitólio quando bombas de gás lacrimogêneo começaram a estourar. "Nessa hora entendi que algo tinha saído errado", diz Kulchesky, que nega ter entrado no prédio.
"Eu estava lá para protestar pacificamente e eu definitivamente diria que sou contra qualquer pessoa subir lá e invadir (o Congresso). Porque era completamente o oposto do que, você sabe, 99,9% de nós acreditávamos. Eu sei que gente pró-Trump estava envolvida nisso. E estou envergonhado por isso, mesmo que você entenda a raiva que sentimos, porque realmente sentimos que fomos privados de direitos", afirmou Joe*, da Virgínia, que na entrevista à BBC no dia 6 se disse "preparado para violência", apontando para uma barra de ferro.
Agora, Joe pediu para não ter seu nome real incluído no texto por temor de "viralizar", como aconteceu com outros participantes da manifestação, como Jacob Anthony Chansley, que irrompeu no Congresso usando trajes de viking.
Mas a fama indesejada na internet não é a única preocupação dele. Embora todos os entrevistados digam que não se envolveram em violência nem entraram no prédio do Congresso, eles ainda podem ser investigados ou mesmo presos. E ao menos um deles afirmou que participará de atos pró-Trump em Washington D.C. no dia 20, quando Biden tomará posse. A cidade prepara forte esquema de segurança para os próximos dias enquanto apura responsabilidades pelos atos do dia 6.
Na terça-feira, 12, o FBI informou que mais de 70 pessoas já foram formalmente acusadas pelo ataque ao Capitólio. Os investigadores abriram até agora 170 casos relacionados ao motim e trabalham na análise de cerca de cem mil arquivos de mídia digital na tentativa de identificar criminosos e testemunhas dos fatos de 6 de janeiro. "Isso é apenas o começo, e não o fim", disse o procurador-geral interino do Distrito de Columbia, Michael Sherwin, que disse esperar processar e prender centenas de pessoas.
É que as investigações até agora mostram que as ações no Capitólio não foram um ato de momento. Isso pode ter sido o caso para alguns, mas a apuração dos fatos mostra que grupos organizaram a invasão de antemão.
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Chad Kulchesky com sua bandeira de Trump estilizado como Rambo no dia 6: 'Tudo o que foi feito naquele dia era necessário, menos invadir o Capitólio' |
Antifascistas
Dottie, moradora do estado de Maryland de 65 anos, que nas primeiras horas da manhã do dia 6 afirmou à BBC estar em frente ao Capitólio por ter certeza que "os democratas roubaram a eleição", admitiu ter chegado a subir as escadas do Capitólio junto à multidão que invadiu o prédio por volta das duas da tarde, mas afirmou que sua intenção era dissuadir os manifestantes de seguir com o motim.
"Eu pedia calma pras pessoas, enquanto outros faziam discurso incitando. Eu tenho certeza que esses que repetiam 'vamos entrar, quebrar tudo' não eram gente nossa, eram antifascistas infiltrados, manifestantes Black Lives Matter que queriam empurrar os trumpistas para o que aconteceu", afirma Dottie, repetindo um argumento falso que passou a circular entre apoiadores e aliados de Trump horas depois do que aconteceu, quando estava clara a possibilidade de que o presidente fosse responsabilizado pela violência.
Durante a votação de abertura do processo de impeachment na Câmara, nesta quarta, 13, o líder republicano, Kevin McCarthy, desmentiu a explicação: "Alguns dizem que a rebelião foi causada por antifascistas. Não existe absolutamente nenhuma evidência disso e os conservadores deveriam ser os primeiros a admitir".
Nem as investigações sustentam a tese da infiltração, nem o presidente Trump a usou naquela quarta, dia 6, quando, em um vídeo postado nas redes sociais e rapidamente derrubado pelas plataformas por incitação à violência, ele afirmou que os invasores eram "patriotas" a quem disse: "eu amo vocês, vocês são muito especiais".
"Mas isso era porque ele não sabia que aqueles eram antifascistas", argumenta Kulchesky, quando confrontado pela BBC News Brasil com a fala de Trump. "Eu sei que existem extremistas na direita, é uma decepção, mas entendo que seja por causa do momento que estamos vivendo. Temos que condenar a violência, mas queremos ser ouvidos e não estamos sendo", completou.
Kulchesky segue convicto de que houve fraude eleitoral na eleição presidencial de novembro, tecla na qual Trump bateu por mais de dois meses sem jamais apresentar evidências da fraude massiva que acusou. Na Justiça, o republicano perdeu mais de 50 processos em oito Estados e na Suprema Corte.
Naquela quarta-feira, dia 6, Trump tentava reescrever o resultado da eleição por duas vias: pedir aos parlamentares que votassem majoritariamente contra o reconhecimento de Joe Biden como presidente eleito e convencer seu vice-presidente Mike Pence, a quem cabia a posição cerimonial de anunciar o vencedor, a alterar unilateralmente os resultados.
Impeachment
Enquanto os apoiadores de Trump forçavam sua entrada no Capitólio, Trump tuitava que "Mike Pence não teve coragem de fazer o que deveria ser feito para proteger nosso país e nossa constituição". Isso, horas após recomendar a seus seguidores que caminhassem até o Capitólio para "lutar". Dentro e fora do prédio, uma massa de pessoas gritava "enforque Mike Pence, enforque Mike Pence". O Serviço Secreto tentou convencer o vice-presidente a se retirar do Congresso, o que Pence não aceitou. Ele passou horas escondido em um porão do Capitólio.
O comportamento do presidente e a resposta da massa são a base da acusação de impeachment, de que Trump impulsionou a multidão para os atos de violência. De acordo com a representante republicana Liz Cheney, que votou a favor do impeachment de Trump, o presidente "acendeu a chama da rebelião".
Para Dottie, Trump não pode ser responsabilizado por seu discurso inflamado. "Imagina como ele se sente, após quatro anos com os democratas o perseguindo todos os dias?", questionou à reportagem, reconhecendo que as palavras do presidente eram confrontativas no discurso que fez à multidão no dia 6.
"É verdade que as pessoas ficaram mesmo um pouco loucas ali, querendo matar Pence. Mas eram patriotas enervados, eu não acho que a culpa disso é de Trump. Esse processo de impeachment é só mais uma parte do plano deles (democratas) para destruí-lo de uma vez. Só vai dividir mais o país", afirma Kulchesky. Segundo ele, a intenção de Trump ao dizer "marchem"e "lutem", era levá-los próximos ao prédio para que os parlamentares lá dentro ouvissem os cantos de "parem a roubalheira" e "lute por Trump". "Ele não queria a invasão".
Joe acredita que Trump tem ao menos parte da responsabilidade pelo que houve naquele dia 6. "Ele reuniu muitas pessoas e as encaminhou para o prédio, mas não acho que ele planejou o ataque. Aquilo foi um comportamento de manada", diz.
Conservadores em crise
À luz dos eventos da última semana, Dottie e Kulchesky dizem seguir firmes como apoiadores de Trump. Kulchesky, inclusive, pretende comparecer a uma nova manifestação de trumpistas na capital do país no dia 20, quando Biden será empossado. Para ele, a batalha pelos resultados eleitorais não deverá acabar com o início do próximo governo.
Um forte esquema de segurança foi montado para o evento, do qual Trump já avisou que não participará. Grades de 3 metros de altura, calçadas por blocos de concreto, circundam o Congresso, vigiado agora por agentes da Guarda Nacional. Washington D.C. está em estado de emergência por duas semanas.
Já Joe afirma que, depois de inúmeras excursões pelo país em apoio ao republicano, não mais participará de atos pró-Trump e diz que não necessariamente ainda o apoia, mas que via nele o primeiro líder a priorizar interesses conservadores desde Ronald Reagan, que presidiu o país nos anos 1980.
Os republicanos enfrentam um momento de crise profunda. Enquanto o presidente Trump se encastelou em acusações falsas de fraude e levou consigo parte dos parlamentares republicanos, como o senador pelo Texas Ted Cruz, outros líderes do partido, como o senador Mitch McConnell dizem nos bastidores que as ações de Trump são passíveis de impeachment. Na Câmara, o líder republicano McCarthy diz que o presidente tem responsabilidade pela invasão do Capitólio e sequer organizou um bloco de resistência ao impedimento, como fez há um ano quando Trump sofreu processo semelhante.
A batalha interna fragilizou o partido, que perdeu não só a presidência, como o controle do Senado. Os democratas comandarão ambos e também a Câmara pela primeira vez em 10 anos. Além disso, grandes empresas como Amazon, Intel e Mastercard anunciaram a suspensão de doações a 147 congressistas republicanos que se colocaram contra a confirmação de Biden como presidente eleito, por incitar a insurreição.
E se custou caro para o bolso a opção dos parlamentares de abraçar os questionamentos de Trump, o posicionamento deles não parece ter atraído a base trumpista para sua órbita. Kulchesky afirma não se sentir representado pelos republicanos, que considera "tão corruptos quanto os democratas". Joe afirma não ver ninguém que possa ocupar esse vácuo agora. Perguntado sobre o que diria a Trump, se pudesse falar com ele, Joe afirmou:
"Muitas pessoas diriam: renuncie, precisamos de uma transição pacífica neste momento. Acredito que agora está acabado. Eu tinha esperança até aquele dia de que pudéssemos descobrir uma maneira de provar que houve uma fraude grosseira na eleição. Depois do dia 6, tudo mudou, é hora de apenas dizer: 'Ei, termine isso, faça uma transição em paz'. E então nós vamos, pacificamente tentar trabalhar para fazer com que nossos valores conservadores voltem ao poder".