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Venezuela no fogo cruzado das potências mundiais

Quando o assunto é Venezuela, as ex-superpotências Estados Unidos e Rússia vasculham fundo no baú de cacarecos verbais da Guerra Fria. Ao anunciar recentemente que todo o faturamento em dólares com importações de petróleo venezuelano ficaria congelado numa conta especial, o assessor de Segurança americano, John Bolton, acrescentou, ameaçador: "A opção militar continua sobre a mesa."

O ministro russo do Exterior, Sergey Lavrov, advertiu contra uma intromissão militar americana: "Parece que os EUA não hesitariam em derrubar governos malquistos na América Latina." Ainda em dezembro, o presidente Vladimir Putin enviara ao Caribe dois bombardeiros supersônicos TU-160, com capacidade para portar armas nucleares. Uma provocação, já que Caracas está a apenas três horas de voo de Miami.

Comparado com os fanfarrões da Rússia e dos EUA, a terceira potência na Venezuela se manifesta de forma quase moderada. Hua Chunjing, porta-voz do Ministério do Exterior da China, urgiu todas as partes envolvidas a manterem a calma e negociarem uma solução política conjunta.

Isso soa tão débil e inócuo quanto uma resolução das Nações Unidas. No entanto, por trás está o pragmatismo chinês e uma porção de understatement, pois a China é a potência mundial que, há uma década, apoiou, com mais de 60 bilhões de dólares, primeiro o autocrata Hugo Chávez e agora seu sucessor, Nicolás Maduro. Sem Pequim, há muito os caudilhos de esquerda já estariam fora do jogo.

Nenhum outro país recebeu tanto crédito chinês quanto o grande produtor de petróleo no Caribe – um fato que os dirigentes em Pequim agora lamentam profundamente. "Com o desastre econômico, social e político, todo o interesse da China na Venezuela dissipou-se de uma vez só", confirma Matt Ferchen, especialista do Carnegie-Tsinghua Center for Global Politics. "A China quer, acima de tudo, estabilidade."

Para Pequim, o foco mundial sobre a Venezuela é um fator perturbador para a longamente planejada conquista estratégica da América Latina. Ele chama a atenção dos EUA e, em última análise, da comunidade internacional para o fato que, nos últimos 15 anos, Pequim expandiu meteoricamente sua influência econômica, mas sobretudo também política, na região.

E isso "no quintal dos Estados Unidos", que é como há quase 200 anos Washington vê os 23 Estados e 650 milhões de habitantes ao sul do Texas, até a Patagônia. Tudo começou em 1823, com a doutrina Monroe, quando o então presidente americano, James Monroe, declarou o Hemisfério Ocidental zona de influência exclusiva dos Estados Unidos. Desde então, os governos americanos consideram em primeira linha os próprios interesses estratégicos.

Agora a doutrina volta a ser colocada à prova, devido à entrada em cena da China – como 50 anos atrás, quando a União Soviética tentou inutilmente ampliar sua influência na região, a partir de Cuba. O novo jogo de poder tem consequências imprevisíveis.

"Washington não estará disposto a aceitar a China como mais importante protagonista econômico e político na América Latina", afirma Oliver Stünkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. No entanto, os EUA provavelmente não terão alternativa, pois num breve prazo os chineses ampliaram sua rede econômica e política na região, e a ela os americanos nada têm para opor.

A direção e velocidade da ofensiva chinesa na América Latina ultrapassa longe a inicial garantia de matérias-primas e energia, a qual acabou por tornar toda a região dependente das exportações para a China de minério de ferro, soja, cobre e petróleo.

Até o momento, o país já investiu lá 150 bilhões de dólares, muito mais do que na África, algo apenas superado por seu engajamento na Ásia. Conglomerados chineses compram usinas, redes de eletricidade, aeroportos e portos marítimos, constroem ferrovias, estabelecem zonas de livre-comércio e agora investem em fábricas de automóveis e plataformas digitais.

Originalmente, a assim chamada Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative, ou BRI) não era destinada à América Latina, mas em 2018 o presidente Xi Jingping constatou, em uma de suas numerosas viagens, que a região "é a expansão natural da Rota da Seda marítima no século 21".

Desde então, 14 nações latino-americanas se candidataram para investimentos chineses no contexto da BRI. Chile, Peru e Colômbia, voltados para o Oceano Pacífico, competem agressivamente a fim de se transformarem em cabeças de ponte para os produtos chineses na América Latina, e para tal estão também dispostos a fazer concessões políticas ao Extremo Oriente.

Em 2018, a República Dominicana, El Salvador e Panamá cortaram relações diplomáticas com o Taiwan e as estabeleceram com Pequim, que os recompensou generosamente. Assim, agora o Panamá fechou mais de 20 grandes projetos com a China, e com seu canal o país é um eixo e polo decisivo para a dominância estratégica dos EUA no Hemisfério Ocidental.

Sob o esquerdista Andrés Manuel López Obrador, também o México, colaborador estreito dos EUA, mostra-se aberto para investimentos chineses. Em conjunto com Pequim, o novo presidente pretende iniciar um Plano Marshall para a América Central, no montante de 30 bilhões de dólares, a fim de criar empregos e infraestrutura na região e, no médio prazo, limitar o fluxo de refugiados em direção ao Norte.

Contra isso, nem mesmo Donald Trump tem como impor seu veto. "A China está procedendo na América Latina com muito mais criatividade do que os EUA", observa Stünkel. Então não é de espantar que, após as hostilidades por parte do presidente americano, o México prefira apostar paralelamente na cooperação com a China.

"Para os governos da América Latina, o engajamento de longo prazo na China é mais atraente do que o tratamento inseguro, volátil, pelos Estados Unidos", comenta Cui Shoujun, diretor do Center for Latin America Studies da Universidade Renmin, na China.

Há muito os EUA mal prestam atenção à América Latina: além de "Chávez, Castro e Coca", o "quintal" não lhes interessa. Mas agora o país alerta de forma ácida contra a sedução chinesa. David Malpass, secretário de Estado para assuntos estrangeiros no Departamento de Finanças americano, menciona problemas de segurança, caso as comunicações da região fiquem centradas em redes chinesas.

O secretário do Exterior Mike Pompeo critica que a China não se preocupe com o bem-estar dos cidadãos latino-americanos, em vez disso cuidando, acima de tudo, do interesse de seu próprio governo: "Esses acordos são bons demais para ser verdade."

A última joia de Maduro

Por muitos anos, a equação era muito simples para o governo de Caracas: o petróleo cru da Venezuela chegava aos EUA de navio. Lá, a Citgo recebia a mercadoria. A subsidiária da estatal petrolífera PDVSA refinava o produto em suas próprias refinarias e vendia a gasolina nos postos Citgo. Os dólares de lucro iam então para Caracas.

Embora os EUA e a Venezuela tenham estado, pelo menos retoricamente, no limiar de uma guerra desde a chegada ao poder de Hugo Chávez, em 1999, a Citgo continuava a fazer negócios, e em Caracas choviam dólares.

É com isso que o governo Trump quer acabar agora. Todo o negócio petrolífero venezuelano nos EUA está autorizado a continuar, mas dólares só chovem nas chamadas contas bloqueadas. O governo americano quer agora tornar essas contas acessíveis ao autoproclamado presidente interino Juan Gaidó.

Para o cientista político venezuelano Ivo Hernández, pesquisador da Universidade de Münster, no oeste da Alemanha, essa medida tem algo de histórico. "Os Estados Unidos eram a única fonte regular de divisas para Venezuela – a curto e médio prazo, este é um duro golpe para Maduro", avalia.

Günther Maihold, do Instituto Alemão de Relações Internacionais e Segurança (SWP), não é tão incisivo. "Agora vai depender de quais fontes alternativas de receita a Venezuela pode dispor agora”, pondera.

Maduro ficou visivelmente irritado com a decisão de sanção dos EUA. "Eles querem nos roubar a Citgo", acusou em um discurso televisionado, acrescentando que a Venezuela vai apelar aos tribunais americanos contra a decisão.

A Citgo já tem mais de 100 anos. Na década de 1980, era uma das maiores empresas de petróleo dos EUA. Em 1986, a PDVSA comprou metade da companhia, depois, em 1990, comprou a totalidade.

Quem quiser entender o significado da Citgo para a Venezuela de hoje, precisa olhar para a PDVSA. A estatal do petróleo da Venezuela operou de forma autônoma por décadas, foi muito lucrativa e também se expandiu para o exterior.

Hugo Chávez tentou usar as receitas da PDVSA para financiar seus programas sociais. Funcionários da PDVSA desafiaram Chávez com meses de greve geral. O presidente venceu.

"Os trabalhadores da PDVSA são a favor desta revolução, e aqueles que não são, devem ir para outro lugar, vão para Miami", disse Chávez. Em 2003, ele declarou 18 mil grevistas da PDVSA como "inimigos do Estado" e os demitiu.

Os críticos também veem a tomada completa da companhia pelo Estado como o começo do declínio do setor petrolífero venezuelano. Gradualmente, os socialistas foram se livrando das participações internacionais na PDVSA. Em 2010, as ações da Ruhr Öl Gmbh – uma joint venture com a BP que tinha quatro refinarias na Alemanha – passaram para a companhia de petróleo russa Rosneft.

Dos quase 3,5 milhões de barris por dia em 1998, a taxa de produção da Venezuela caiu para menos de 2 milhões de barris em 2017. No ano passado, devido à crise econômica, o país exportou apenas 1,2 milhão de barris, segundo estimativas da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep).

A Citgo afirma ser capaz de processar 750 mil barris por dia em suas refinarias nos EUA. O restante do petróleo da Venezuela vai para a Rússia e a China, segundo o cientista político e especialista em energia Hernández. "Mas provavelmente não há dinheiro novo, pois as remessas são usadas como contrapartida por empréstimos."

Na verdade, Maduro provavelmente estaria no fim se não fossem seus apoiadores na China, Turquia, Irã e Rússia. Segundo relatos, somente a China poderia ter gasto entre 50 e 60 bilhões de dólares em empréstimos, pagos com petróleo. Nos 11 primeiros meses do ano passado, segundo a agência de notícias econômicas Bloomberg, a China importou 340 mil barris de petróleo por dia.

Na Venezuela, mais de 90% de toda a receita cambial vêm das exportações de petróleo. Como a última joia comercial no exterior, a Citgo é, portanto, a fonte vital de divisas de Maduro. Mas mesmo na Citgo, da outrora orgulhosa rede de cerca de 14 mil postos de gasolina, restam apenas cerca de 5 mil; das oito refinarias de antigamente, permanecem só três.

Como o regime de Maduro sofre de dificuldades financeiras crônicas, a Venezuela doou 49,9% das ações da Citgo como garantia ao grupo russo Rosneft. No geral, estima-se que a Rússia já tenha doado 17 bilhões de dólares à Venezuela.

É por isso que a Rússia defende a Venezuela, criticando as sanções dos EUA. O Kremlin afirmou que defenderá seus interesses "dentro do quadro jurídico internacional".

O especialista em América Latina Günther Maihold, do SWP, afirma que quase não há dados confiáveis da Venezuela. "Devido ao fato de que a cooperação com organizações internacionais cessou, a Venezuela não está mais fornecendo dados", frisa.

Maihold vê problemas legais nas ações dos EUA. "Você não pode simplesmente ignorar as relações de propriedade. Isso contradiz não só as regras da economia mundial como também da economia dos EUA."

John Bolton, conselheiro de segurança nacional de Trump, quer congelar diretamente 7 bilhões de dólares em ativos. Através do negócio do petróleo, podem ser somados outros 11 bilhões no decorrer do ano.

Se os EUA realmente fizerem isso, a Venezuela poderá parar de fornecer petróleo cru à Citgo. "Mas mesmo a curto e médio prazo, nenhuma nova fonte de receita deverá ser encontrada”, acredita Ivo Hernández, observando que há diversos tipos de petróleo. "As refinarias são especializadas em determinados tipos", explica o especialista venezuelano.

A rapidez com que o governo venezuelano poderá encontrar novas fontes de divisas vai depender da disposição de seus aliados no exterior permanecerem leais a Maduro. Pelo menos os mercados financeiros são céticos e acreditam que Maduro não durará muito mais tempo.

Segundo o Financial Times, os preços dos títulos do governo venezuelano e dos títulos da PDVSA aumentaram significativamente. Os investidores já estão especulando sobre uma mudança de poder e investem nos papéis. Acima de tudo, eles esperam obter bons lucros com a reconstrução do setor petrolífero.

 

 

 

 

 

 

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