Por Natalia Viri | De São Paulo
Está em curso no maior fabricante de armas do país uma queda de braço pouco usual entre a administração da empresa e seu auditor externo. Forjas Taurus e Ernst & Young (EY) não se entendem sobre a contabilização da venda de uma subsidiária e, por dois trimestres seguidos, a auditoria se recusa a aprovar as contas da companhia.
É normal haver divergências entre quem faz o balanço e quem o fiscaliza, mas os dois costumam chegar a um acordo antes que o auditor finalize o relatório que é publicado com as demonstrações financeiras. Se a administração insistir em algum ponto que o auditor não concorde, o parecer pode vir com uma ressalva, o que já é considerado grave, mas não desqualifica todo o balanço. O que a Taurus, istada nos níveis de governança da bolsa, enfrenta é pior e muito mais raro: seus números levaram um "parecer adverso", ou seja, foram recusados na totalidade.
Outro sinal preocupante, em meio a esse imbróglio, foram duas baixas na companhia. Em setembro, duas semanas antes da divulgação do balanço do segundo trimestre, Edair Deconto, que pertencia ao comitê de auditoria e trabalhava há mais de 10 anos na Taurus, renunciou. Nesta semana, o desfalque foi próprio presidente Dennis Gonçalves. Na divulgação dos resultados trimestrais, na segunda-feira, primeiro foi dito que ele não poderia comparecer à teleconferência com os analistas. Depois, enquanto ocorria a reunião, a empresa informou por nota que ela havia deixado o cargo, após ter "completado seu ciclo".
A disputa envolve a venda da Taurus Máquinas-Ferramenta, fechada em junho de 2012, por R$ 115 milhões, a serem pagos ao longo de mais de 10 anos. A primeira parcela venceria em 12 meses. Até hoje, a direção não viu um centavo em dinheiro. Em agosto, o comprador, o grupo SüdMetal, pediu a revisão do contrato. Em um acordo de cavalheiros, sem a mediação da Justiça, a Taurus concordou em reduzir o valor pela metade, para R$ 57,2 milhões.
A primeira parcela, de R$ 1,9 milhão, foi paga com peças. A segunda foi adiada para junho de 2014. Nesse meio-tempo, o SüdMetal já assumiu a fábrica. Fontes ouvidas pela reportagem afirmam que o grupo já está à frente da Taurus Máquinas-Ferramenta desde a primeira metade do ano. A Forjas Taurus teve que reconhecer uma perda de R$ 57,8 milhões no balanço do segundo trimestre, publicado com dois meses de atraso. O prejuízo no período foi de R$ 101 milhões. Mas a baixa contábil não foi suficiente para resolver a questão. A EY, que foi contratada em abril de 2012 em substituição à KPMG, alega em seu parecer do balanço do segundo trimestre de 2013, que a empresa já tinha conhecimento dos fatores que levaram a redução do valor da venda quando contrato foi fechado.
Ou seja, na visão dos auditores, o lucro de 2012 estava inflado em R$ 57,8 milhões – valor relevante, considerando que, no ano passado como um todo, os ganhos da Taurus foram de R$ 41,9 milhões. A auditoria diz ainda que não há comprovação de que a Taurus receberá o valor restante. "Até a conclusão de nossos trabalhos, não havíamos recebido todas as análises que nos permitissem concluir sobre a realização desse recebível e se o mesmo está devidamente registrado a seu valor presente", disse a EY no parecer sobre o balanço. Procurada, a firma diz que não pode fazer declarações sobre seus clientes.
Em um documento datado de maio – antes do pedido de revisão do contrato, portanto – a Taurus já reconhecia o risco de calote. "A companhia incorre no risco de não recebimento das parcelas previamente acordadas, sendo suscetível [à] situação financeira do grupo SüdMetal", escreveu no Formulário de Referência, um dos documentos obrigatórios enviados à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) pelas companhias abertas.
Unidade de máquinas industriais foi vendida por R$ 115 milhões em 2012; neste ano, valor caiu pela metade
O problema, de fato, é a situação financeira do SüdMetal. O grupo enfrenta diversos processos trabalhistas, tem atrasado o pagamento de fornecedores e é processado pela União por evasão fiscal. O dono do grupo, Renato Conill, foi indiciado pelo Ministério Público Federal (MPF). O executivo é acusado de ter montado uma cadeia de empresas para desviar ativos executáveis de suas fábricas e driblar o Fisco. Os tributos devidos chegam perto dos R$ 210 milhões.
Diversas ações de bloqueio de bens tramitam em primeira instância. A aquisição da Taurus Máquinas-Ferramenta foi feita por meio da Renill Participações, veículo de investimentos que ainda não está listado nas empresas que são cobradas pelo Fisco. Mas a Procuradoria Geral da Fazenda do Rio Grande do Sul abriu novos processos no intuito de listá-la entre as companhias passíveis de confisco. O fato de a Taurus ter dado um desconto de 50% no contrato de venda pode ter chamado a atenção dos auditores, disse ao Valor um especialista que prefere não ser identificado. Se o ativo agora vale a metade do que estava registrado nos livros é um indício de que estava superavaliado e teria de ter sido "baixado", como mandam as normas contábeis. E, além disso, existem duvidas sobre a capacidade de pagamento do comprador, o que aumenta a incerteza sobre a realização do negócio.
A Taurus afirma que a revisão no contrato deveu-se a mudanças no cenário macroeconômico e a segunda metade do pagamento, que foi cancelada, seria feita por meio de serviços e mercadorias, o que não condizia mais com sua estratégia de produção. A informação de que a segunda tranche tos seria paga na forma de produção apareceu apenas neste ano. No balanço do segundo trimestre de 2012, a empresa dizia apenas que R$ 64 milhões seriam pagos em parcelas semestrais, ao fim das quais os R$ 51,3 milhões restantes seriam quitados mensalmente.
A companhia disse ainda que 89% dos R$ 60 milhões a serem recebidos do grupo SüdMetal (em valores atualizados) são cobertos por garantias reais. Questionada sobre a possibilidade dessas garantias serem invalidadas caso a Renill tenha seus bens bloqueados, a Taurus respondeu que não cabe a ela comentar sobre a situação financeira de terceiros.
O SüdMetal respondeu, por meio de seu diretor jurídico, que tem capacidade de arcar com a compra e que os bens envolvidos nos processos com o Fisco não interferem nas garantias oferecidas pelo ativo. Ele afirmou ainda que as acusações do MPF contra Conill são falsas e que "e que os ativos das empresas cobrem suficientemente suas responsabilidades fiscais".
A CVM já abriu um processo para investigar o balanço do segundo trimestre da Forjas Taurus, de acordo com informações disponíveis em seu site. Sem entrar no episódio específico da fabricante de armas, a CVM informou que, nesses casos, pode exigir a republicação dos balanços, "podendo também ocorrer a apuração de responsabilidades, conforme as especificidades de cada caso".
Se o impasse com os auditores persistir, o tamanho do problema tende a aumentar. A revisão das demonstrações contábeis trimestrais não é tão completa quanto a auditoria realizada no fechamento do ano. Um balanço anual com opinião adversa seria uma péssima notícia para a companhia.
Comprador foi lobista na lei de Desarmamento
Por De São Paulo
Renato Conill, dono do grupo SüdMetal, é um velho conhecido da Forjas Taurus. Muito antes de comprar a Taurus Máquinas-Ferramenta no ano passado, o empresário atuou como representante comercial da companhia por mais de 20 anos e chegou a ocupar o cargo de diretor vice-presidente comercial e de marketing em 2003, liderando a articulação da fabricante de pistolas em Brasília na época do Estatuto do Desarmamento.
O processo instaurado pelo Ministério Público contra Conill por desvio de ativos tributáveis, ao qual o Valor teve acesso, mostra que a Taurus foi responsável pelo pagamento de R$ 12,5 milhões à Sulbrás Representação de Equipamentos de Segurança, empresa no nome do empresário sediada em Brasília, entre 2004 e 2008.
Segundo a Taurus, o dinheiro refere-se "apenas e exclusivamente a contrato de representação comercial firmado entre ambos, que foi encerrado no primeiro trimestre de 2006". A empresa nega que o executivo tenha ocupado o cargo de diretor estatutário, apesar de materiais de divulgação de resultados de 2003 o listarem entre a alta diretoria. Em entrevista concedida ao Valor naquele ano, o então presidente da Taurus, Carlos Murgel, também refere-se a Conill como diretor vice-presidente e ressalta que o lobby em Brasília ficava a cargo dele.
Em nota, o diretor jurídico do grupo SüdMetal afirmou que não comentaria questões cobertas por sigilo fiscal, informando apenas que "todas as remunerações pagas por Forjas Taurus foram devidamente tributadas pela Sulbrás Representações".
A unidade de máquinas industriais de Gravataí foi adquirida pela Taurus em 2004, menos de um ano após Conill ter deixado a diretoria da empresa. Foi naquele ano que o empresário deu início ao grupo SüdMetal, a partir da aquisição da metalúrgica Hahn Ferrabraz.
A aquisição da Taurus Máquinas-Ferramenta veio num momento em que a fabricante de pistolas tentava diversificar seus negócios, após as restrições impostas à comercialização de armas no país. Mas o ativo nunca deu o retorno esperado. Até o fim do ano passado, os prejuízos acumulados somavam cerca de R$ 120 milhões.