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Sergio Duarte – O “TABU NUCLEAR” E A EROSÃO DA ORDEM NUCLEAR

O “TABU NUCLEAR” E A EROSÃO DA ORDEM NUCLEAR

Consequências do conflito na Ucrânia

 

SERGIO DUARTE

Embaixador. Presidente das Conferências Pugwash
sobre Ciência e Assuntos Mundiais.  Ex-Alto

Representante das Nações Unidas para
Assuntos de Desarmamento.

 

“A ordem nuclear repousa em três vertentes principais:
estabilidade estratégica, o tabu nuclear  e a não proliferação.

A ordem vigente não confere prioridade semelhante
ao desarmamento nuclear.”

Jeffrey W. Knopf, 21 de outubro de 2021.

 

A edição da revista The Economist de 4 de junho corrente traz interessante editorial com o título A New nuclear era (Uma nova era nuclear), seguido pelo artigo Thinking the Unthinkable (Pensando o impensável). Ambos se referem à possibilidade de uso de armas nucleares e às consequências da guerra na Ucrânia sobre a ordem nuclear vigente.

O editorial recorda a ameaça de “consequências jamais vistas em toda a história” feita pelo presidente russo Vladimir Putin aos países ocidentais que interferissem no conflito. As consequências dessa situação são altamente preocupantes. Primeiro, porque países que se considerem vulneráveis a ameaças ou ataques atômicos poderão se sentir tentados a obter capacidade nuclear própria, prejudicando os esforços de não proliferação.

A propósito, pode-se recordar que a própria Ucrânia restituiu à União Soviética o armamento nuclear localizado em seu território, em troca de garantias posteriormente violadas. Segundo, porque outros países nuclearmente armados poderão vir a emular a atitude russa, o que modificaria os dados da estabilidade estratégica.

Finalmente, porque o “tabu nuclear” se veria enfraquecido. Até o momento as advertências de uso de armas nucleares haviam sido dirigidas apenas contra outros países possuidores. Desta vez, as ameaças russas visam países não nuclearmente armados no contexto de uma guerra convencional.  Como assinala a epígrafe do presente artigo, o desarmamento nuclear não tem sido visto como prioridademas constitui um objetivo compartilhado.

A conclusão dos dois textos é que a ordem nuclear mundial, baseada nos instrumentos internacionais em vigor se encontra gravemente comprometida. Tais instrumentos são, principalmente:


a) o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), pelo qual os países não possuidores dessas armas se obrigaram a não vir a obtê-las em troca de medidas de desarmamento de garantias de segurança consubstanciadas em uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, e,

b) o Tratado Abrangente de Proibição de Ensaios Nucleares, que proibiu explosões experimentais em todos os ambientes. Diversos outros acordos, tanto de âmbito global quanto regional ou bilateral completam os fundamentos da ordem nuclear, que embora discriminatória e deficiente tem vigorado durante os decênios posteriores à Segunda Guerra Mundial e concorrido para a ausência de episódios de uso bélico dessas armas após 1945.


Quanto ao possível uso de armas nucleares na atual situação do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, o receio imediato é que armas denominadas “táticas”, isto é, de baixa potência explosiva (mesmo assim, tão potentes quanto as bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki) venham a ser empregadas, determinando uma mudança radical de patamar. Tal eventualidade poderia facilmente levar a uma escalada na qual armas cada vez mais potentes transformem a guerra em um verdadeiro enfrentamento nuclear direto entre a Rússia e a OTAN. Recorde-se, a esse respeito, o livro de Herman Khan dos anos 1980 que inspira o título ao segundo dos dois textos do Economist.

Essa obra, altamente influente no pensamento dos responsáveis pela política nuclear dos Estados Unidos, descreve os passos sucessivos do cenário que na visão do autor poderia levar à catástrofe nuclear e conclui pela necessidade de manter a superioridade sobre os potenciais adversários – base conceitual da corrida armamentista a que assistimos até hoje

O artigo “Pensando o Impensável” trata de outro componente importante da ordem nuclear vigente, embora não codificado como preceito do direito internacional: o chamado “tabu nuclear” Esse fenômeno foi estudado pela pesquisadora Nina Tannenwald, da Universidade Brown, a qual argumentou que o fato de armas nucleares não terem sido usadas desde a destruição das duas cidades japonesas não decorre somente da aplicação da doutrina de dissuasão, mas decorre também de um crescente sentimento de que tal uso seria inaceitável em termos morais por ser inerentemente maligno.

À medida que essa percepção se generalizava a busca de armas nucleares por novos países passou a ser vista pelos que já as possuíam como uma forma de barbárie. O artigo reconhece a hipocrisia dessa visão, que divide as armas atômicas em “boas” ou “’más”, conforme a inclinação política do observador.

A posse exclusiva e perpétua, por um pequeno grupo de países, de armas capazes de extinguir a vida e a civilização humanas ao toque de um botão não é aceitável para uma parcela importante da população do planeta. Ao mesmo tempo, a ausência de progresso tangível em direção ao desarmamento nuclear e a aparente falta de interesse dos atuais países nuclearmente armados em contemplar com seriedade medidas eficazes nesse sentido continua corroer a credibilidade do regime instituído pelo Tratado de Não Proliferação e os demais instrumentos internacionais.

Infelizmente, a adesão incondicional a doutrinas que pressupõem o constante aperfeiçoamento dessas armas e seu uso nas circunstâncias que seus possuidores considerarem adequadas geraram uma espécie de complacência na opinião pública, que prefere não tomar atitudes mais contundentes de repúdio a essa situação.

A erosão do conjunto de normas de direito internacional em que se apoia a ordem nuclear não é recente. Ao longo dos sete decênios da era atômica esses acordos vêm se mostrando cada vez menos capazes de oferecer segurança tanto às nações mais armadas quanto a todas as demais. O resultado tem sido o descrédito das promessas de um mundo mais seguro para todos, contidas naqueles instrumentos.

Tanto no plano privado quanto no das relações entre estados, os acordos celebrados somente são eficazes e duráveis enquanto suas partes os considerem consentâneos com seus interesses. A confiança e a credibilidade são ingredientes essenciais para o êxito e durabilidade de quaisquer arranjos entre países ou grupos de países. A constante erosão da arquitetura de desarmamento e controle de armamentos representa uma ameaça à segurança de todos e precisa ser revertida por meio da cooperação e da negociação, em busca de medidas eficazes de desarmamento que levem em consideração as aspirações da comunidade internacional como um todo.

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