Resenha Estratégica do MSIa
Lorenzo Carrasco e Geraldo Lino
A estratégia dos EUA e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para provocar uma escalada de tensões nas fronteiras da Federação Russa, na Ucrânia, Cáucaso e Mar Negro, acaba de receber como resposta uma clara mensagem militar, de que um eventual conflito real não seria travado apenas “no terreno”, mas em um cenário bem mais amplo, inclusive, no ambiente espacial. Este é o significado da destruição de um antigo satélite de reconhecimento russo desativado por meio de um míssil antissatélite disparado em 15 de novembro pelas Forças Aeroespaciais Russas.
A ação militar se seguiu à decisão do presidente Vladimir Putin de não responder às provocativas manobras navais da OTAN no Mar Negro com contramanobras da Marinha Russa, a exemplo do episódio envolvendo o destróier britânico HMS Defender, em junho último (Resenha Estratégica, 07/07/2021). Além de evitar atritos desnecessários, pois as manobras ocorrem em águas internacionais, ninguém (principalmente, os estrategistas da OTAN) ignora que em uma situação bélica real a sobrevivência de quaisquer belonaves inimigas na área seria contada em minutos. Jogando com uma combinação de paciência estratégica e firmeza, o Kremlin espera que a sua ostensiva superioridade tecnológica e a demonstração de determinação em não deixar que a linha vermelha já traçada seja atravessada, funcionem como elementos dissuasórios contra eventuais atos desesperados de insanidade estratégica de um sistema hegemônico declinante.
O novo míssil é o mais recente acréscimo ao sofisticado arsenal de armas avançadas com as quais a Rússia se empenha em assegurar uma superioridade tecnológica decisiva, com ênfase em mísseis hipersônicos de longo alcance, contra os quais os EUA e seus aliados da OTAN não têm quaisquer defesas efetivas. Revelada pelo presidente Vladimir Putin, no histórico discurso de 1º. de março de 2018 no Parlamento Russo, essa nova geração de armamentos avançados representa uma resposta “assimétrica” ao cerco físico e às provocações dos EUA e seus prepostos, com um orçamento militar que não passa de uma pequena fração do dos seus autoproclamados adversários. Com a destruição do satélite, Moscou transmitiu o recado claro de que tem meios para “cegar” os satélites adversários no caso de um conflito real, ao mesmo tempo em que pode lançar devastadoras salvas de mísseis hipersônicos virtualmente invulneráveis, cujos alvos primários seriam os centros de comando e controle da Aliança Atlântica, como o próprio Putin já afirmou publicamente em mais de uma ocasião.
A demonstração russa provocou uma tsunami de condenações em capitais ocidentais, começando, evidentemente, por Washington. O comandante do Comando Espacial dos EUA, general James Dickinson, trovejou: “A Rússia demonstrou uma desconsideração deliberada pela segurança, estabilidade e sustentabilidade a longo prazo do domínio espacial de todas as nações. Os detritos criados pela arma anti-satélite da Rússia continuarão a representar uma ameaça às atividades no espaço exterior durante anos a fio, colocando em risco satélites e missões espaciais, além de forçar mais manobras para evitar colisões. As atividades espaciais estão na base do nosso modo de vida e esse tipo de comportamento é simplesmente irresponsável (USSC, 15/11/2021).”
Declarações semelhantes foram feitas pelo Departamento de Estado, o Pentágono, o administrador da Agência Nacional de Aeronáutica e Espaço (NASA), o secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e os governos do Reino Unido, Alemanha e França. A ministra da Defesa francesa, Florence Parly, chegou a chamar os russos de “vândalos espaciais” (France24, 16/11/2021).
Órgãos midiáticos ocidentais se esmeraram em vincular o caso a uma manobra feita pela Estação Espacial Internacional (ISS) (cuja órbita se situa a cerca de 220 km abaixo da do satélite destruído), para evitar um detrito detectado em sua direção, mais provavelmente, oriundo de um antigo satélite chinês desativado.
Testes de armas anti-satélite não são exclusividade russa, já tendo sido feitos pela China (2007), EUA (2008) e Índia (2019), embora contra alvos em órbitas bem inferiores à do satélite russo destruído. De acordo com o analista militar russo Andrei Martyanov, os motivos da reação apoplética de Washington não se devem a uma infundada preocupação com a segurança da ISS, mas ao fato de o surpreendente desempenho do míssil A-235 Nudol representar uma ameaça direta às constelações de satélites militares de reconhecimento estadunidenses, inclusive, a celebrada Starlink da empresa SpaceX do bilionário Elon Musk, situada em altitudes da ordem de 550 km (o satélite Cosmos-1408 destruído orbitava a 645 km de altitude). Segundo ele, a capacidade demonstrada pelo míssil significa “o fim do sistema estadunidense de órbita baixa para monitorar lançamentos de armas hipersônicas (Reminiscence of the Future, 16/11/2021)”.
Para reforçar o “recado”, na quinta-feira 18, a Marinha Russa efetuou mais um teste do míssil antinavio hipersônico Zircon, capaz de atingir alvos navais e terrestres a 1.000 km de distância a uma velocidade de Mach 9 (nove vezes a velocidade do som). A arma pode ser disparada tanto de navios de superfície, como nesse caso, ou de submarinos.
No mesmo dia, em um discurso em Moscou, Putin observou que “a OTAN rompeu de forma pró-ativa todos os mecanismos de diálogo” e advertiu que o país “reagirá adequadamente” às atividades militares da Aliança próximo às suas fronteiras: “Que não se lhes ocorra organizar qualquer conflito desnecessário nas nossas regiões ocidentais. Não necessitamos de conflitos (RT, 18/11/2021).”
A advertência russa de que uma nova guerra “quente” seria travada em todas as dimensões espaciais, ao contrário das duas guerras mundiais (nas quais os EUA se mantiveram intocados), deveria ser uma indicação que não há a possibilidade de triunfo militar de uma potência sobre outras, que não implique na destruição da civilização. Esta é uma realidade inconteste, que deveria conduzir ao estabelecimento de uma ordem mundial cooperativa centrada no respeito aos Estados nacionais soberanos – mas para a qual os formuladores de políticas de Washington, Londres, Bruxelas, Paris e Berlim, em especial, precisam se convencer