Gerardo Lissardy
Os protestos de rua que surgiram na Venezuela, no Brasil e em outros países da América Latina representam um desafio especial para a esquerda da região, que cresceu por força de mobilizações populares.
Com contextos e demandas diferentes, as revoltas recentes de estudantes venezuelanos, brasileiros, idosos nicaraguenses e indígenas bolivianos têm em comum terem surgido sem bandeiras partidárias claras, complicando governos e partidos de esquerda.
Nelas, houve choques violentos entre policiais e manifestantes, que frequentemente denunciam o uso excessivo de força por autoridades.
Segundo analistas, a forma como a esquerda reagiu ao poder das manifestações, em algumas vezes com repúdio e noutras com desconcerto, reflete uma certa dificuldade para admitir que a mobilização popular pode ser usada contra ela.
"Eles pensaram que as ruas lhes pertencia, que as demandas das ruas são feitas ao poder e esse poder normalmente é 'reacionário', 'de direita' ou 'fascista'", disse à BBC Mundo Margarita López Maya, historiadora venezuelana especializada em protestos populares.
"Agora são um grande desafio porque, estando a esquerda no poder, os protestos continuam ocorrendo."
Encapsulados
Em vários protestos recentes na região, houve atos de vandalismo e de violência por parte dos manifestantes – que foram rapidamente condenados pelo governo. Também houve políticos opositores tentando canalizar esse descontentamento.
Mas os presidentes atuaram de forma diferente em relação às exigências das ruas.
Dilma afirmou na semana passada que seu governo prepara um projeto de lei para "coibir toda a forma de violência em manifestações" e que, no Mundial deste ano, poderia posicionar as Forças Armadas nas ruas em casos de atos de vandalismo.
O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, afirmou que, em seu país, há um plano de golpe de Estado por trás dos protestos – que foram iniciados por estudantes e logo ganharam apoio social e político.
Maduro também defendeu a detenção do líder político opositor Leopoldo López para ser julgado por incitação à secessão – acusação que o opositor nega –e se declarou disposto a enviar "toda a força militar" para o estado de Táchira, zona onde começaram os protestos dos últimos dias na Venezuela.
Para Heinz Dieterich, sociólogo alemão autor do conceito de "socialismo do século 21", Maduro acerta ao usar a força do Estado contra a violência, mas "equivoca-se totalmente em não apresentar um projeto estrutural para solução dos problemas".
Segundo o sociólogo, que foi próximo ao ex-presidente venezuelano Hugo Chávez, os sistemas políticos da região têm falhas que também foram vistas no Chile governado por Sebastián Piñera, presidente de direita que enfrentou fortes protestos estudantis.
"Os governos estão encapsulados em suas próprias estruturas, e os canais de comunicação com as necessidades populares funcionam em uma só direção: de cima para baixo", disse Dieterich à BBC Mundo.
"Eles não conseguem captar o que querem os movimentos sociais e dos cidadãos", acrescentou. "Isso obriga os cidadãos a levar o protesto para a rua ou a assumir formas de dissidência mais fortes."
'Guerras justas'
O descontentamento social em países da região governados pela esquerda são atribuídos ao desejo de muitos de conseguir novas melhorias após anos de programas sociais, que, por exemplo no Brasil, tiraram milhões da pobreza.
Mas a situação econômica se complicou em vários países, com o crescimento menor e a limitação dos recursos.
O cientista político venezuelano Carlos Romero acredita que as manifestações devem ser analisadas a partir das expectativas de mudanças que a esquerda gerou durante anos e que nunca foram completamente satisfeitas.
Romero diz que a esquerda acumulou experiência com partidos e sindicatos, mas agora tem um desafio com as demandas de movimentos sociais, muitas vezes sem uma estrutura ou ideologia concreta por trás.
Em 2013, na Nicarágua presidida pelo sandinista Daniel Ortega, gerou irritação o despejo de idosos que reivindicavam pensões. Na Bolívia de Evo Morales, primeiro presidente indígena do país, houve no passado confrontos entre a polícia com índios que se opunham à construção de uma estrada.
Na Argentina, houve nos últimos anos protestos convocados por redes sociais contra o governo de Cristina Kirchner, que é parte do movimento peronista – que soube fazer das ruas seu grande bastião.
Isso não quer dizer que a esquerda tenha abandonado a estratégia de mobilização popular.
Nos últimos dias, também ocorreram na Venezuela grandes atos a favor de Maduro, e a Colômbia vivenciou em dezembro e janeiro grandes protestos contra um pedido de destituição do prefeito de Bogotá, o ex-guerrilheiro Gustavo Petro.
Mas algumas pessoas enxergam uma contradição entre a pregação clássica da esquerda a favor da mobilização de rua e das guerrilhas de outrora e sua atitude quando no poder diante dos protestos, com manobras violenta ou para desestabilizá-los.
"Eles reprimem e falam contra os protestos e assumem facilmente um vocabulário que antes era usado pela direita", disse o brasileiro Marcelo Coutinho, professor de Relações Internacionais e especialista em América Latina.
Por outro lado, alguns acreditam que as circunstâncias mudaram.
O presidente uruguaio, José Mujica, um ex-guerrilheiro que não vem enfrentando grandes protestos durante seu governo, referindo-se à situação da Venezuela, afirmou que "antigamente podia haver o que chamávamos de guerras justas, sobretudo aquelas de independência".
"Mas, nos últimos 20 ou 30 anos", acrescentou Mujica à emissora venezuelana TeleSur, "todas as guerras e todas as formas de violência servem para que se prejudiquem aqueles que já são naturalmente mais fracos".