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Por que a Rússia tenta justificar guerra da Ucrânia com combate ao nazismo?

Desde o início da invasão russa na Ucrânia, o Kremlim repete o discurso de que a guerra tem por objetivo o combate contra o nazismo no território vizinho. A Rússia estaria em busca de “desnazificar” a Ucrânia.

É parte dessa narrativa a fala do chanceler Serguei Lavrov afirmando que o fato do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, ser judeu não invalidaria o argumento. “Hitler também tinha sangue judeu”, disse, frase repudiada pelos governos israelense e alemão nesta segunda-feira (2).

A insistência da Rússia em citar o nazismo em suas explicações sobre os ataques militares na Ucrânia não se justifica pelos pequenos grupos neonazistas que existem no país vizinho, como em tantos outros territórios europeus, nem na política liderada pelo presidente ucraniano. 

O discurso russo se inscreve na política de Vladimir Putin de glorificar o passado soviético e estimular a imagem mítica de uma potência russa que continuaria em sua batalha fatal contra o nazismo, explicam especialistas.

O enaltecimento do papel da União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial é tão central nesta estratégia de propaganda de Putin que passou a fazer parte da Constituição em 2020.

A vitória da Rússia contra a Alemanha nazista é amplamente comemorada no governo Putin, desde os anos 2000, a cada dia 9 de maio. O aumento da beligerância russa em Donbass nas últimas semanas seria, de acordo com analistas, uma tentativa de apresentar conquistas russas nos próximos festejos.

Uma Rússia vitoriosa que libertou o mundo

Quando chega ao poder, nos anos 2000, Putin tem diante de si uma nação que perdeu sua importância internacional e tenta se reconstruir após diversas crises. 

Com a intenção de recolocar a Rússia no tabuleiro internacional e unificar a população, Putin decide retomar o mito da Glória Soviética construído durante o período da URSS comandada por Léonid Brejnev, entre 1964 e 1982.

Na propaganda soviética da época, a União Soviética é a grande responsável pela libertação do mundo das garras nazistas alemãs, enquanto os países da Europa se acostumavam bem ou mal a viver sob o jugo de Hitler. Nessa versão, o número de soldados soviéticos mortos é de 7 milhões, uma perda humana muito menor do que o luto causado, na realidade, pelas 26 milhões de mortes.

Além disso, como sublinha o pesquisador Nicolas Werth, em entrevista ao Le Monde, os soldados tornam-se os heróis centrais da história, deixando em segundo plano a imagem de Stálin. Com isso, Brejnev cria "a unidade do povo, do partido e do exército", explica o professor emérito.

Essa é a imagem recuperada por Putin, a Rússia como uma potência antinazista que tem na vitória de 1945 a base de sua legitimidade e da identidade russa.

Ao longo dos anos, Putin reforça o discurso dos russos como heróis do combate ao nazismo e amplifica com comemorações nacionalistas grandiosas das datas ligadas à Segunda Guerra Mundial. Para isso, o presidente usa as armas soviéticas da manipulação histórica, chegando a mudar a Constituição, em 2020, para incluir a proibição de qualquer forma de minimizar o heroísmo dos russos.

A censura de historiadores, professores e jornalistas garante a difusão da versão russa. No ano passado, a Federação Internacional de Direitos Humanos publicou um relatório de 80 páginas em que listava ataques sistemáticos do governo russo contra a memória do país e contra aqueles que tentam estudar ou defender versões diferentes da história.

“Qualquer afirmação que contradiga a glorificação da ação da União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial ou que lance uma sombra sobre o regime ou sobre as autoridades soviéticas é considerada negativa”, explicou à época Ilya Nuzov, chefe da FIDH para a Europa Oriental à RFI.

Mídia russa estabelece elo entre Ucrânia de hoje e nazismo

Nesse cadinho, a identificação da Ucrânia com o inimigo nazista dos anos 1940 é usada para forjar o apoio da população russa à guerra.

Na base da explicação, a colaboração do líder ucraniano nacionalista Stepan Bandeira com a Alemanha nazista na esperança de que o regime de Hitler mais tarde apoia-se a independência da Ucrânia da URSS, conta a historiadora Korine Amacher, no texto "De onde vem a obsessão russa com uma Ucrânia nazi".

A tentativa do governo ucraniano em 2010 de dar a Bandera o reconhecimento como herói da nação –decisão invalidada na Justiça posteriormente– é o suficiente no discurso russo para apontar a Ucrânia como um país de governo nazista.

As afirmações, no entanto, mantêm pouca relação com a realidade. A extrema direita tem papel marginal na política ucraniana. E mesmo os laços do famoso batalhão Azov com grupos neonazistas não parecem suficientes para justificar as informações divulgadas pela mídia russa. 

O batalhão Azov, formado em 2014 na mesma época da anexação da Crimeia, conta hoje com cerca de 3.500 e 5.000 soldados. Um número pouco expressivo diante do exército ucraniano, formado hoje por cerca de 350 mil soldados, com o alistamento urgente de milhares de homens desde que os russos invadiram o território ucraniano. 

Contudo, em reportagens divulgadas na imprensa russa, jornalistas descrevem os campos de treinamento ucranianos como locais de depravação e violência, com soldados que consomem drogas, fazem festas libertinas e torturam pessoas, além de ostentarem diversos símbolos nazistas. 

"Nazistas, satanistas, torturadores, mercenários, drogados e alcoolatras, essa é a imagem repetida o tempo todo sobre os combatentes ucranianos nas redes de televisão da Rússia", conta a jornalista Elena Volochine, chefe de redação da France24 em Moscou.

"A propaganda russa pinta um quadro em preto e branco e dá a entender que todos os combatentes das forças ucranianas são, como seriam à época da Segunda Guerra, nazistas", finaliza a jornalista francesa.

Essa propaganda russa pode estar na raiz da atuação violenta de soldados na Ucrânia, como a morte de civis e a execução de pessoas presas em Bucha.

"A propaganda tem necessariamente um efeito sobre os soldados que entraram na guerra. Se [o presidente russo Vladimir Putin] diz que a Ucrânia "não existe" e que o país está "cheio de nazistas", esses soldados podem considerar que as pessoas que tentam fugir [das cidades ocupadas da Ucrânia] são nazistas, e decidir atirar neles", aponta o General Dominique Trinquand, ex-chefe da missão militar francesa na ONU.

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